1 Volume 1 Fev 2020 - Internet & Sociedade

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número 1 volume 1 fev 2020

Conselho EditorialDalton Lopes MartinsFACULDADE DE CIÊNCIA DA INFORMAÇÃO, UNBElias Duarte Jr.A Revista Internet & Sociedade é umapublicação semestral organizada peloInternetLab, centro independentede pesquisa em direito, políticaspúblicas e tecnologia localizado emSão Paulo (SP). Nosso objetivo é reunirinsumos, evidências e argumentosque aprofundem o pensamento críticoem torno de diferentes aspectossociais, econômicos, políticos eregulatórios envolvendo mídias digitaise tecnologias de comunicação einformação; e, assim, avançar debatesacadêmicos e abordar as múltiplasdimensões entre internet e sociedade.DEPARTAMENTO DE INFORMÁTICA, UFPRGisele CraveiroESCOLA DE ARTES, CIÊNCIAS E HUMANIDADES, USPGiselle BeiguelmannFACULDADE DE ARQUITETURA E URBANISMO, USPGraciela NathansonFACULDADE DE COMUNICAÇÃO, UFBAJosé Roberto XavierFACULDADE NACIONAL DE DIREITO, UFRJJussara Marques de AlmeidaDEPARTAMENTO DE CIÊNCIA DA COMPUTAÇÃO, UFMGMaíra Rocha MachadoESCOLA DE DIREITO, FGV-SPMarcelo ThompsonFACULDADE DE DIREITO, UNIVERSIDADE DE HONG KONGRogerio ChristofolettiDEPARTAMENTO DE JORNALISMO, UFSCVirgílio Afonso da SilvaFACULDADE DE DIREITO, USPEditoresDennys AntonialliFrancisco Brito CruzMariana Giorgetti ValenteEditores executivosBeatriz KiraMurilo RoncolatoIdentidade visual,Internet & Sociedade, n.1, v.1– 2020, 1º semestre.projeto gráficoe diagramaçãoPolar.ltdaImagem da capaRevisão de textoAlexandre VillaresSinuhe CruzSiteMirror LabEste trabalho está licenciado sob aLicença Atribuição-CompartilhaIgual 4.0Internacional Creative Commons.This work is licensed under aCreative Commons Attribution-ShareAlike4.0 International internetlab.org.br

3CARTADOSEDITORESO lançamento da primeira edição da revista Internet & Sociedade é umaenorme realização, para nós e para o InternetLab, centro de pesquisa emdireito e tecnologia. Desde que colocamos o nosso projeto na rua, maisde cinco anos atrás, viemos sentindo falta de uma revista acadêmicabrasileira que agregasse produções do campo de estudos de internet esociedade – que internacionalmente costuma ser chamado de “Internetstudies”. Internet & Sociedade é, assim, um desejo já antigo, e um projetoque levou mais de um ano de planejamento e o trabalho de muitas mãos.O primeiro número carrega já o que procurávamos para a revista:uma coleção de abordagens diversas, sofisticadas e de diferentes disciplinas, sobre a internet e suas múltiplas possíveis relações com a vidasocial. São artigos sobre inteligência artificial, comunicação política, privacidade e proteção de dados, neutralidade da rede e violência online.O conjunto é acompanhado de obras artísticas e literárias que se aproximam dos temas por outros caminhos. Ainda, como contribuição doseditores, trazemos neste número a tradução de um texto da professora epesquisadora norte-americana danah boyd, sobre construção de identidades entre jovens e como o ambiente online propicia o que ela chamade “colapso contextual”, que julgamos conter sementes importantes parapensar internet neste momento no Brasil.Esta coleção fala por si só, e, portanto, a mensagem desta carta é simples. Contribuir para e qualificar o debate a respeito da internet no Brasilenvolve criar espaços de disseminação e construção de diálogos paraquem está fazendo um bom trabalho. Pesquisa deve ser um empreendimento coletivo, político e democrático. Boa leitura!

4SUMÁRIO p. 5Escrevendo a suaprópria existênciadanah boyd p. 38Internet e participaçãocultural: o cenáriobrasileiro segundoa pesquisa TICDomicíliosLuciana PiazzonBarbosa Lima eWinston Oyadomari p. 91Como vencer umaeleição sem sairde casa: a ascensãodo populismodigital no BrasilLetícia Cesarino p. 121Responsabilidade civilpelo uso de sistemas deinteligência artificial:em busca de umnovo paradigma p. 144O fenômeno dasfake news: definição,combate e contextoMarco AntônioPedigone PonceLigia E. Setenareski,Ramon MarianoLeticia M. Peres,CarneiroLuis C. E. Bona e p. 230Lei Geral De ProteçãoDe Dados e a tutelados dados pessoais decrianças e adolescentes:a efetividade doconsentimento dos paisou responsáveis legaisEmanuella RibeiroHalfeld Maciel p. 172A democracia frustrada:fake news, política eliberdade de expressãonas redes sociais p. 311Virtualidade, violênciaonline e corpo:uma compreensãofenomenológicaNara Helena LopesPereira da SilvaBarbara FernandaFerreira Yandra,Amanda CristinaAlves Silva e JéssicaGuedes SantosSousa Alves eRafael Mafei RabeloQueiroz e Paula p. 278Panorama mundialda regulação daneutralidade da redeElias P. Duarte Jr.Enrico Roberto p. 64Tércio Sampaio FerrazJúnior e Sigilo dedados: o direito àprivacidade e os limitesà função fiscalizadorado Estado: o quepermanece e o quedeve ser reconsiderado p. 200“Li e aceito”: violações adireitos fundamentaisnos termos de uso dasplataformas digitais p. 250A experiência degoverno eletrônico doJudiciário brasileiro:estudo de caso dosTribunais de Justiça p. 331“Formato governaacesso”: A poéticacomputacional deDennis TenenPedro Zylbersztajn p. 3402850 interpolaçõesde triângulos v3Alexandre VillaresVânia de Oliveira AlvesLucas Borgesde CarvalhoTraduçãoArtigoResenhaProdução Artística

5TRADUÇÃOEscrevendo a suaprópria existênciadanah boydTradução:Francisco Brito CruzMariana G. Valente

6ESCREVENDO A SUAPRÓPRIA EXISTÊNCIAN. 1 V. 1 FEVEREIRO DE 2020PÁGINAS 5 A 37DANAHBOYDEscrevendo a suaprópria existênciadanah boydApresentação dos tradutoresEsta é a tradução do Capítulo 4 da tese quea professora e pesquisadora danah boyd(sim, escreve-se no minúsculo) defendeu naUniversidade da Califórnia, Berkeley, em 2008,chamada Taken Out of Context – American teen sociality in networked publics. Por que traduzir umtexto “tão antigo”, dada a velocidade com que asaplicações e usos da internet se desenvolvem?Nos últimos anos, ganhou bastante tração noBrasil a discussão acerca dos “filtros-bolha”, ouo fenômeno de sermos cercados, na internet,por informações que dizem respeito a interesses e opiniões que já temos e manifestamos,por causa de como aprendem os algoritmosde seleção de conteúdo com o nosso comportamento. Há pesquisas que indicam que issoé real e produz radicalização, e há outras queapontam que, ao contrário, na internet, as pessoas têm acesso a mais diversidade de conteúdos e opiniões do que teriam se não estivessemonline. De uma forma ou de outra, parece bastante autoevidente que, pelas redes sociais, écomum eu ficar sabendo das posições políticasdo meu vizinho ou colega de natação, o quenão necessariamente ocorreria nos nossos espaços de convívio social.Diante desse debate, pareceu-nos importanteretomar a discussão de danah boyd sobre umfenômeno pouco debatido: o colapso contextual, inicialmente introduzido por ela em suadissertação de mestrado, defendida em 2006.Ao examinar minuciosamente a forma pelaqual adolescentes estadunidenses construíamperfis em um dos primeiros sites de rede social massificados, o MySpace, boyd ilustra comexemplos como a internet “derruba os limites” que permitem a distinção de contextos empráticas de formação e apresentação de identidade, borrando os papéis sociais que as pessoasocupam em diferentes contextos. O colapsocontextual é o apagamento do conjunto de circunstâncias que tendem a acompanhar uma comunicaçãopropagada, neste caso, por meio digital. E isso é afonte de muitos conflitos.O colapso contextual está presente em diversas discussões contemporâneas, como nadiscussão sobre notícias falsas, por exemplo,à medida que compreender uma informaçãojornalística passa por saber situar contextos.Ele está também na intrincada discussão sobreos limites da liberdade de expressão na internet, pois entender a piada como engraçada ouofensiva também depende da construção (oudesconstrução) de contextos. Ainda, o apagamento de contextos alimenta a instrumentalização de fragmentos do discurso político emfavor da polarização.No capítulo que traduzimos, a autora aindarevela como esse fenômeno toca não só questões envolvendo liberdade de expressão, mastambém privacidade e proteção de dados. Os

7N. 1 V. 1 FEVEREIRO DE 2020PÁGINAS 5 A 37ESCREVENDO A SUAPRÓPRIA EXISTÊNCIADANAHBOYDadolescentes estudados começavam a percebercomo as configurações de privacidade, os métodos de ocultação de identidade e pseudonimato e práticas de controle de quais eram seuspúblicos desejados auxiliavam na árdua tarefade que eles não fossem mal interpretados ouobservados por figuras de autoridade (ou querepresentavam risco).Parece-nos que compreender os potenciaisproblemas que emergem de contextos nosquais há colapso contextual é uma tarefa imperativa para o campo de estudos sobre internete sociedade. Abordagens como essa enraízam acompreensão de como as redes sociais e a internet interagem com a sociedade e a política,fazendo frente a lugares comuns tecnocêntricos, daqueles que endeusam a tecnologia àqueles que a retratam como motor de uma tragédiaglobal incontrolável. Produzimos uma traduçãopara o português1, em acesso aberto, na expectativa de que os argumentos de boyd contribuam para o debate brasileiro no presente.Agradecemos à danah boyd, por autorizara tradução deste capítulo; ao colega MárcioMoretto Ribeiro, que foi quem nos provocoucom a lembrança da tese do colapso contextual – e ao observar sua importância no presente contexto; e a Sinuhe Cruz, pela revisãocuidadosa.1A tese de danah boyd foi retrabalhada e transformadano livro “It’s Complicated”, que ganhou uma tradução para oportuguês (de Portugal) pela editora Relógio D’Água (2015).

8N. 1 V. 1 FEVEREIRO DE 2020PÁGINAS 5 A 37ESCREVENDO A SUAPRÓPRIA EXISTÊNCIAEscrevendo a sua própriaexistênciaeu sou allie. eu não sou uma pessoa muitocomplexa. eu gosto de música. eu gostode ler. adoro conhecer novas pessoas.ainda estou tentando descobrir muitascoisas. sobre Deus. sobre a vida. sobre omeu futuro. sobre pessoas. não gosto dequem sou, mas estou trabalhando paraser alguém melhor. estou realmentetentando seguir Jesus com tudo de mim.às vezes eu preciso de ajuda”–Allie, umamenina branca de 17 anos de Indiana,em seu “Sobre Mim” no MySpace1Escrever uma declaração biográfica podeser desafiador. As maneiras de descrever a simesmo são incontáveis e a escolha de qual caminho é apropriado depende totalmente docontexto. Mesmo com o contexto em mente,retratar-se com sucesso não é simples, seja porescrito ou ao vivo. Em um esforço para causaruma boa impressão, as pessoas tendem a olharem volta, ver como os outros estão agindonesse contexto e escolher sua performance deacordo com isso. Dependendo de como são recebidas, as pessoas alteram seu comportamentopara aumentar a probabilidade de serem percebidas como pretendem. Essa é a essência doque Erving Goffman (1959) chama de “gerenciamento de impressões”, incluindo os processos envolvidos na “apresentação do eu”.Ambientes mediados, como públicos emrede, formalizam e alteram os processos identitários de autoapresentação e gerenciamentode impressões. Adolescentes precisam formalmente tornar sua presença conhecida pormeio da criação explícita de perfis, e os atositerativos de gerenciamento de impressões sãocomplicados pelo limitado feedback social nosDANAHBOYDambientes online. O que é ainda mais desafiador é que adolescentes precisam fazê-lo emum ambiente cujo contexto não é claro e mudaconstantemente.A autodescrição do “About me” de Allie emseu perfil do MySpace revela sua tentativa dese localizar textualmente. Além dessa descrição, Allie oferece um autorretrato sorridente,uma lista eclética de interesses, uma variedadede gostos culturais, informações demográficas simples, postagens reflexivas no blog e umamúsica melancólica para enriquecer sua autorrepresentação digital. Sua lista de Amigos2e os comentários que eles postam fornecemuma visão de seu mundo social, impactandosua identidade. Enquanto o perfil de Allie noMySpace é cheio de informações sobre quemela é, a própria criação desse perfil é uma estranheza do ponto de vista social, no sentido deque a geração de Allie é a primeira a ter que searticular publicamente, a ter que escrever-secomo ser, como uma pré-condição à participação social.Por mais rico que seja o perfil dela, é difícilsituar Allie. Sua autodescrição revela algumaangústia, mas ela está radiante na fotografia.Sua autodescrição permaneceu a mesma pormeses, o que dificultou que eu percebesse mudanças. A partir dos cinco posts que ela fez noblog no período de dois anos, eu pude constatarque ela esteve lutando para entender sua religião, mas não tenho ideia de quão presentesesses pensamentos estão em sua vida cotidiana,nem sei por que esse é o único tópico que elaparece postar sobre. Eu posso ver quem ela listacomo “Amigos”, mas não tenho ideia do que elaacha sobre essas pessoas ou sobre aqueles comquem ela convive e que não estão no MySpace.O perfil dela é público, o que possibilita queeu o veja, mas tenho uma vaga ideia apenas dequem ela pretende que o visualize. Por tudo oque é revelado, há muito mais que não o é.Todos os dias, em ambientes não mediados,as pessoas buscam gerenciar as impressões que

9N. 1 V. 1 FEVEREIRO DE 2020PÁGINAS 5 A 37ESCREVENDO A SUAPRÓPRIA EXISTÊNCIAcausam nas interações sociais de uma formaritualística. Esse gerenciamento de impressõesexige que elas negociem, expressem e ajustemos sinais que explicitamente emitem e aquelesque implicitamente elas deixam transparecer.Em seu texto seminal, Goffman (1959) detalhaas maneiras pelas quais as pessoas levam emconsideração a situação social e o seu própriopapel nela no uso da linguagem corporal, dafala e de outras pessoas para transmitir umaimpressão. O que a descrição de Goffman nãoprevê é a maneira como as situações mediadaspodem alterar esse processo.Muito do que as pessoas tomam por certoem situações não mediadas não pode ser levado em consideração em situações mediadas.No online, não há corpos no sentido corpóreo, oque oculta tanto as informações de identidadeque tipicamente são gravadas no corpo quantoas informações de presença que tornam umapessoa visível para outras pessoas. Para existir em contextos mediados, as pessoas devemenvolver-se em atos explícitos, escrevendo-se.Em sites de redes sociais, isso significa criar umperfil e consubstanciar-se nos campos disponíveis como um ato de autoapresentação.Embora a criação de uma identidade digitaltangível seja relativamente simples, negociara tecnologia para se envolver em atos de autoapresentação e gerenciamento de impressõesé complexo e diferente de como esses atos sedesenrolam em ambientes não mediados. Osprocessos de sinalização social são complicadospela tecnologia, o que altera como adolescentespodem obter acesso aos fundamentos do gerenciamento de impressões: contexto, retorno3explícito e reações implícitas. A natureza persistente, pesquisável, alterável e de rede dessesambientes dificulta que adolescentes situemsua performance e, portanto, corre-se o riscode que elas sejam tiradas de contexto. Ao criare negociar autoapresentações em espaços mediados, os adolescentes lutam para desenvolver técnicas para dar conta e adaptar-se a essesDANAHBOYDambientes.Este capítulo examina algumas das maneiras pelas quais adolescentes negociam suasautoapresentações e o gerenciamento de impressões em sites de redes sociais por meio daconstrução e manutenção de perfis. Ao analisar essas práticas, considero as maneiras pelasquais os adolescentes alteram suas práticas emtorno do gerenciamento de identidades e deimpressões para dar conta dos recursos técnicos dos sites de redes sociais. Meu objetivo éanalisar como adolescentes incorporam sites deredes sociais em suas práticas de identidade ecomo eles trabalham com e contra a tecnologiapara atender às suas necessidades.1. Localizando IdentidadeOs processos de autoapresentação e gerenciamento de impressões estão intrinsecamenteligados ao conceito de “identidade”, mas otermo “identidade” é, na melhor das hipóteses,escorregadio. Estudiosos vêm se debatendo hátempos sobre o significado desse termo, bemcomo suas raízes psicológicas, sociais, culturais e filosóficas (Buckingham 2007; Gay et al.2001). Inúmeras teorias já foram apresentadascomo sendo as abordagens definitivas de identidade, e essa continua sendo uma área de debates ricos.Buscando situar o conceito de identidade,Buckingham (2007) mapeia cinco concepçõesde identidade que podem ser especificamenteúteis para pensar sobre adolescentes e novasmídias. Primeiro, ele mira nas abordagens psicológicas ou comportamentais, para as quaisidentidade é um processo de desenvolvimento.A adolescência é marcada pelas maneiras pelasquais a identidade é formada, ou é ao menosposta em crise. Alguns dos principais estudiosos que seguem essa linha são G. Stanley Hall,Jean Piaget e Erik Erikson. Em segundo lugar,

10N. 1 V. 1 FEVEREIRO DE 2020PÁGINAS 5 A 37ESCREVENDO A SUAPRÓPRIA EXISTÊNCIAele se volta para abordagens sociológicas nasquais a identidade é marcada pela relação deum indivíduo com a sociedade ou a cultura.Questões de “socialização” moldam esse discurso, notavelmente visto em estudos de subculturas e nas formas como desvio e delinquência são vistos como um desenvolvimento falhode identidade. Em terceiro lugar, Buckinghamfornece uma noção de identidade social queé melhor entendida como “identificação”, naqual o sentido de si do indivíduo é marcado emrelação ao grupo. Aqui, os estudos de Goffmansobre autoapresentação e gerenciamento deimpressões desempenham um papel central.Em quarto lugar, ele trata do conceito de “políticas de identidade”, que emerge das disputas em torno de como identidades são construídas pelos detentores de poder. Esse campode estudos desestabiliza a noção de quem temrealmente o poder de construir e controlar aidentidade de um indivíduo, e está fortementeligado a discursos de classe, raça, gênero equeer. Em quinto lugar, ele apresenta como ateoria social moderna aborda identidade comosendo o que Anthony Giddens (1991) chama deum “projeto autorreflexivo do eu”, ou aquilo aque Michel Foucault (1990) poderia se referircomo “automonitoramento”.Nos discursos técnico e jurídico, o termo“identidade” é frequentemente utilizado parafazer referência a uma pessoa ou um corpoparticular (Solove, 2006). Sistemas técnicos frequentemente usam “identidade” para se referirao identificador em uma base de dados ou aoconjunto de características demográficas queidentificam alguém de forma única. Discussõesjurídicas sobre “roubo de identidade” e privacidade também vão por esse caminho, usandoidentidade para referir-se à coleção de informações que referencia com sucesso uma pessoaespecífica.Há já uma extensa produção acadêmica nainterseção de tecnologia (incluindo a Internet)e identidade, vinda de perspectivas teóricas eDANAHBOYDmetodológicas diversas, e endereçando diferentes aspectos de identidade (Balsamo, 1995;Castells, 2004; Clippinger, 2007; Donath, 1999;Reed, 2005). Uma parte dos primeiros trabalhos, como o “Manifesto Ciborgue”, de DonnaHaraway (1991a), focou em como uma existência mediada como um ciborgue resultaria emnovas manifestações de identidade, o que desafiaria sistemas de poder por complicar premissas corporificadas nas políticas de identidade. Mas, apesar de a hipótese de Haraway terlevantado enormes discussões e análises, essefuturo utópico não chegou. Mesmo quandotentam enganar, as pessoas reproduzem onlineas suas experiências corporificadas (Berman &Bruckman, 2001).Uma das estudiosas mais proeminentes queexaminam as questões envolvendo identidadee tecnologia é Sherry Turkle. Seus textos seminais The Second Self (1984) e Life on the Screen(1995) examinam a identidade a partir de umaperspectiva psicológica, concentrando-se principalmente na juventude. Turkle usa a psicanálise para considerar as maneiras pelas quaisa tecnologia auxilia e complica o desenvolvimento da identidade. Ela também afirma que afragmentação da identidade possibilitada pelatecnologia leva a crise de identidade a novos patamares (Turkle, 1995, pp. 255-269). Ao mostrare examinar maneiras pelas quais jovens usama tecnologia para trabalhar com a identidade,Turkle enquadra tais práticas como atos de simulação de identidade. Sua análise assume quea atividade online é separada das interações físicas. Além disso, seu trabalho se concentra emjovens e crianças que acabam de ser introduzidas na computação. Embora nossos interesses de pesquisa sejam semelhantes, discordo demuitas das conclusões de Turkle. Mesmo quesua análise seja válida para aqueles que estãotentando criar mundos “virtuais” separados pormeio do engajamento online, a grande maioriados adolescentes não é assim. Por esse motivo,acredito que a suposição de que adolescentes

11N. 1 V. 1 FEVEREIRO DE 2020PÁGINAS 5 A 37ESCREVENDO A SUAPRÓPRIA EXISTÊNCIAestão fragmentando suas identidades por meiodo engajamento online é imprecisa. Dito isto,acredito que eles apresentam uma faceta de suaidentidade com base no contexto social envolvido (boyd, 2002). Só não acredito que isso crieas crises de identidade sugeridas por Turkle.Como muitos estudiosos antes de mim, eutento juntar várias abordagens sobre identidadeem minha própria abordagem. Embora me baseie em várias estruturas teóricas, a abordagemde Goffman sobre a performance de si mesmoe a negociação que envolve o gerenciamento deimpressões estão no centro. As estruturas queeu propositalmente excluo são aquelas que presumem que a identidade é um conjunto de etapas pré-estabelecidas e delimitadas no tempo;não concordo com essa visão, embora ocasionalmente dialogue com estudiosos que a adotam. Vejo perfis como “corpos digitais”, poisidentificam uma pessoa de forma única e sãoo fruto de uma produção de identidade autorreflexiva. Para mim, os perfis localizam e sãoa combinação de uma série de autodescriçõescontroladas no contexto das conexões sociais.Quando os adolescentes lutam com as formascomo são vistos e com como eles se distinguemna relação com aqueles a seu redor, vejo umtrabalho identitário que combina as maneirascomplexas pelas quais normas sociais, contextoe pessoas complicam atos de autoapresentaçãoe gerenciamento de identidade. A meu ver, essetrabalho deles inaugura um conjunto inteiramente novo de políticas de identidade, e eu indico as formas pelas quais o colapso de contextos pode aumentar desafios daqueles cujasidentidades são enquadradas por sistemas depoder.DANAHBOYD2. Escrevendo aidentidade para estaronlineAnalisando a cultura textual de uma comunidade online dos primórdios da Internet, JennySundén (2003, p. 3) argumentou que um participante precisa se envolver de maneira ativae consistente em “digitar a si mesmo em ser”4para existir e ser visível online. A pesquisa deSundén se concentrou em um precursor dejogos de role-playing game online para múltiplosjogadores, conhecidos como MUD (sigla paraMulti-User Domain ou Multi-User Dungeon). Nesseambiente social de jogo, os participantes precisavam produzir textualmente todos os aspectosdo mundo imaginado, desde as mesas e cadeiras de uma sala até os acessórios de moda usados pelos personagens. Assim, eles digitavama existência de espaços e explicitamente digitavam a existência de pessoas. Atributos comogênero eram atribuídos a uma pessoa por meiodo uso de um comando como “@gender”.Em ambientes não-mediados, é fácil que oscorpos – e os papéis que eles desempenham –sejam tomados como dados. Ao localizar umapessoa no espaço e no tempo, um corpo sinaliza presença de seu próprio ser. Um corpo écarregado com pistas sobre a identidade deuma pessoa; gênero, raça e idade são inscritosno corpo de maneiras que muitas vezes são difíceis de ocultar. Por meio da moda e de maneirismos, os corpos podem ser usados paratransmitir uma ampla variedade de atitudes,emoções, afiliações e informações de identidade. Os corpos, no sentido tradicional, nãoexistem online. Por padrão, a presença digital deuma pessoa é pouco mais do que um endereçoIP. Enquanto os corpos no sentido material nãoestão presentes online, Sundén argumenta queo mundo digital não está livre das restriçõesdos corpos de materialidade, pois “o virtual

12N. 1 V. 1 FEVEREIRO DE 2020PÁGINAS 5 A 37ESCREVENDO A SUAPRÓPRIA EXISTÊNCIAnão equivale automaticamente a ‘descorporificação’” (Sundén, 2003, p. 5). A forma comoas pessoas se representam e interagem online éfundamentalmente influenciada por sua experiência corporificada.Nos ambientes que Sundén estava pesquisando, era bastante comum que os participantes não tivessem interações face a face entre si.Do mesmo modo, as normas nos MUDs nãoexigiam que os participantes modelassem suasrepresentações online para refletir com precisãoseus corpos offline. Assim, os corpos dos personagens digitados pelos participantes nos MUDspodem não ser “reais” no sentido comumenteentendido. Tais desvios não são consideradosenganosos nos MUDs, pois esses ambientesincentivam brincar com identidades e os participantes não assumem que uma apresentação textual seja uma representação sincera docorpo não-mediado de quem digita.Por outro lado, para os adolescentes americanos, os sites de redes sociais não são um espaço distinto que é construído online e deixadocomo uma esfera de imaginação virtual. Asperformances, conversas, interações e contextodos sites de redes sociais estão intimamente ligados a outros aspectos da vida dos participantes. Adolescentes movem-se suavemente entrediferentes ambientes mediados e não-mediados, e sua participação em sites de redes sociais geralmente está intrinsecamente ligada aencontros não mediados. Adolescentes participam desses espaços ao lado de pessoas comquem interagem em ambientes não mediados.As performances que acontecem online não sãoatos isolados, desconectados das configuraçõescorporificadas, mas atos conscientes que dependem de um contexto que abrange ambientes mediados e não mediados e envolve pessoasconhecidas em ambas as situações. Embora ojogo de identidade seja comum nos MUDs, osperfis que adolescentes criam nos sites de redessociais geralmente estão bastante conectados àidentidade corporificada neles em ambientesDANAHBOYDnão mediados.A continuidade entre sites de redes sociais eoutros ambientes afeta as práticas de adolescentes em relação à criação de uma representação digital. Os corpos digitais que emergemdos perfis estão firmemente amarrados ao indivíduo por trás do perfil, por nenhuma razãosenão porque servem como uma representação digital direta dessa pessoa para interaçõesmediadas. Embora alguns sugiram que o trabalho identitário pela Internet tende a envolvera criação de personagens fictícios desconectados da realidade incorporada (Turkle 1995), essanão foi uma prática comum que testemunhei.Alguns adolescentes optam por representar umeu idealizado ou apresentar uma faceta de suaidentidade que eles normalmente não mostram em espaços públicos, mas poucos geramautorrepresentações completamente desconectadas de suas experiências cotidianas. Maisfrequentemente, eles estão simplesmente procurando se representar da maneira mais positiva possível.O processo de digitar online o seu ser forçaos adolescentes a trabalhar com a identidadede novas maneiras. Adolescentes precisam descobrir como se imaginam e como querem servistos e, em seguida, devem usar ferramentaspara expressar isso formalmente, por vezes semos mecanismos de retorno e avaliação5 e o contexto que tornam o gerenciamento de impressões fluido. Eles precisam lutar contra seremmal interpretados e terem sua representaçãocontrolada pelas pessoas em volta deles e pelaprópria tecnologia. Porém, a maneira comoeles gerenciam isso através da construção emanutenção de perfis ajuda a compreender asinterseções entre identidade e tecnologia e asmaneiras pelas quais os adolescentes aprendema lidar com a identidade em ambientes totalmente novos.

13N. 1 V. 1 FEVEREIRO DE 2020PÁGINAS 5 A 37ESCREVENDO A SUAPRÓPRIA EXISTÊNCIA3. A arte da criação egerenciamento de perfisO simples ato de criar um perfil em uma redesocial exige alguma autorreflexão, ao menospara decidir conscientemente o que preencher ou ignorar nas questões e formulários.Conforme documentado em relação a muitosgêneros de mídia social (Brake, 2008; Ellisonet al., 2006; Hodkinson & Lincoln, 2008; Reed,2005), construir e atualizar um “corpo digital”de forma criativa exige que os participantespensem em como desejam se representar. Criarautorrepresentações digitais tornou-se um atocorriqueiro para muitos adolescentes. Da escolha de um “nome de tela” para se representarem um aplicativo de mensagens instantâneas6à atualização de um blog e manutenção de umperfil de site de rede social, os adolescentes queeu encontrei frequentemente enfrentam pressão para ser espirituosos, divertidos, criativosou interessantes quando estão se dedicando àescrita de sua existência online.A pressão que adolescentes enfrentam na autoapresentação digital não é totalmente diferente daquela que envolve moda e imagem emcontextos não mediados. A maneira pela qualadolescentes individuais se adornam–onlineou offline–sinaliza informações valiosas sobreseu senso de si e sua identidade social (Crane,2000; Davis, 1992). Os adolescentes consomema moda como uma forma direta de autoexpressão (Piacentini & Mailer, 2004) e buscam símbolos da moda que lhes permitam simultaneamente se encaixar e se destacar entre seus pares(Milner, 2004). Usando texto, imagens e outrasmídias, bem como design, adolescentes criamperfis que sinalizam informações sobre suasidentidades. As autorrepresentações mediadasque eles criam revelam tanto o que eles têmem comum como a forma como eles se distinguem daqueles que os rodeiam (Liu, 2007).Criar um perfil é um ato de gerenciamento deDANAHBOYDimpressões, o que requer que os adolescentestenham em mente quem pode ver seus perfise como eles podem ser interpretados. Assim, odesejo de serem vistos sob uma luz positiva ouprecisa compele os adolescentes a elaboraremcuidadosamente seus perfis.3.1. Técnicas paraautoapresentaçãoElaborar o perfil perfeito em um site derede social é uma arte. Escolher foto

Agradecemos à danah boyd, por autorizar a tradução deste capítulo; ao colega Márcio Moretto Ribeiro, que foi quem nos provocou com a lembrança da tese do colapso contex-tual - e ao observar sua importância no pre-sente contexto; e a Sinuhe Cruz, pela revisão cuidadosa. 1 A tese de danah boyd foi retrabalhada e transformada