UTOPIA

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THOMAS MOREUTOPIA

' B'\JP '"C,uI P RIA reflexão sobre a temática das rela ções intern acionais está pr esente desdeos pensadores da Anti güidade grega, co mo é o caso de Tucídides.Igualmente, obras como a Utopia, de Thomas Mo re, e o s escritos deMaquiavel, Hobbes e Montesquieu requerem, para sua melhor compreensão,um a leitur a so b a ótica mais ampla das relações ent re Estados e povos.No mundo moderno, como é sabido, a disciplina Relações Internac ionaissurgiu após a Primeira G uerra Mundial e, desde então, experimentounot ável desenvolvimen to, transformando-se em matéria indi spen sável parao ente ndimento do cenário atual. Assim sendo, as relaçõe s int ernacion aiscon stituem área essencial do conhecimento que é, ao mesm o tempo,antiga, mod erna e contemporânea .No Brasil, ape sar do crescent e int eresse nos meios acadê mico, político,empresar ial, sindical e jorn alístico pelos assuntos de rela ções exteriores epolítica internacional, constata-se eno rme carência bibliográfica nessa matéria.N esse sentido, o In stituto de Pesquisa de Relações Intern acion ais - IPRI e aEditora Universidade de Brasília estabeleceram parceria par a viabilizar aedição sistemá tica so b a forma de coleção, de obras básicas par a o estudodas relações intern acionais. Algumas das obras incIuidas na coleção nuncaforam traduzidas para o português, com o O Direito das Gentes de Emer deVatell, enquanto outro s títulos, apesar de não serem inéditos na línguaportuguesa, encontram-se esgotados, sendo de difícil acesso. De sse mod o,a coleção Clássicos IPRI tem por objetivo facilitar ao público interessado oacesso a obras con sideradas fundamentais para o estudodas relações intern acion ais.Cada um dos livro s da coleç ão conta com apresentação feita por umesp ecialista, que situa a obra em seu tempo, discutindo também suaimpo rtância dentro do panor ama geral da reflexão sobre as relações entreEs tado s e naçõe s. Os Clássicos IPRI destinam-se especialmente ao meiouniversitário brasileiro qu e tem registrado, nos últim o s anos, umexpressivo aumen to no número de cursos de !:,Tfadu ação e pós-graduaçãona área de rela ções interna cionais.

COLEÇÃOCLÁSSICOST LI C í D I DI': SIPRIG. W. f.HE(;Io:L"História da Guerra do Peloponeso"'Textos Selecionados"Prefácio: Hélio JaguaribeOrganização e Prefácio: Franklin TreinE.H. CARRJEAN-JACQUES ROUSSI':AU'Vinte Anos de Crise 1919-1939."Roussea» e as Relações Internacionais"Prefácio: Eiiti SatoOrganização e Prefácio: Gelson Fonseca Jr.J. M. KLYNI':S':4s Consequênaas hconômicas da Paz"Prefácio: Marcelo de Paiva AbreuRA Y 1\!ON DA RONNoR "-IA NA N (;t': L L'.:4 Grande I1usào"Prefácio: José ParadisoT H o "-IA S M oR lo:'7)az e Guerra entre as Nações""Utopia"Prefácio: Antonio PaimPrefácio: João AlminoMA( lIIAVEL"Conselhos DIplomáticos""Escritos Selecionados"Vários autoresOrganização e Prefácio:Luiz Felipe de Seixas CorrêaOrg. e Prefácio: J. A. Guilhon AlbuquerqueHu(;o GROTIUS"O Direito da Guerra e da Paz"Prefácio: Celso LaferEMI':R DE VATTEL"O Direito das Gentes"Tradução e Prefácio: Vicente Marotta RangelALE X ISIH:To c o U E V I LLI':"Escritos Selecionados"Org.e Prefácio: Ricardo Vélez RodriguesT H o "-IA S H oB H I,:S'Textos Selecionados"Organização e Prefácio: Renato Janine RibeiroHANS MORGI':NTHAU'.:4 Política entre as Nações"Prefácio: Ronaldo M. SardenbergABB I"': DI,: SAI NT- P 11':R RI,:"Projeto para tornar Perpétua a Paz na Europa"Organização e Prefácio: Ricardo SeitenfusI 1\11\1/\ N L: E L K A N T"Escritos Políticos"Prefácio: Carlos Herinque CardimHEDLEY BULL'.:4 Sociedade Anárquica"Prefácio: Williams GonçalvesS A 1\1 U I,: L P LI l' I,: N D o R I'"Do Direito Natural e das Gentes"FRANCISCO DE VITORIAPrefácio: Tércio Sampaio Ferraz Jr."De lndis et De Jure Belli"C 1\ RLV ON CLA LI SI':WIT/."Da Guerra"Prefácio: Domício ProençaApresentação:Fernando Augusto Albuquerque MourãoPrefácio:Antônio Augusto Cançado Trindade

FUNDM;ÀO ALEXANDRE DE GUSMÀO -Presidenta: EivlB,\IX;\()()RA THERLZAFUNAGj\IARIA MACHADO QLilNTELLAINSTITUTO DE PESQUISA DE REl.AC;ÜES INTERNACIONAIS -Diretora: EivIH,\IX,\DORA HI':LOÍSA VILHI':N/\IPRIDI·: ARAlJIOEDITORA UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA - UNBPresidente: HENRYK SII':WIERSKIDiretor: AIJ XANDRE LI1\IAConselho Editorial.' CI.ARI1\L\R ALi\lEIDAV\I.LI·:, DIONE OLIVEIRA MOL'RA, J\DER SOARESMARINHO FlI.IIO, RICARDO SlI.VI·:IRA BFRNARDES E SL:ZFTI·: VENTURHU

I P R ITHOMAS MOREUTOPIAPrefácio:João AlminoTradução:Anah de Melo FrancoInstituto de Pesquisa de Relações InternacionaisEditora Universidade de Brasl1iaBrasl1ia, 2004

Direitos c desta edição:Editora Universidade de BrasíliaSCS Q. 2 - Bloco C - n? 78 - 2 AndarCEP.: 70300-500 - Brasília - DFA presente edição foi feita em forma cooperativa entre o Instituto de Pesquisa de RelaçõesInternacionais (lPRI/FUNAG) e a Editora Universidade de Brasília. Todos os direitosreservados conforme a lei. Nenhuma parte desta publicação poderá ser armazenada oureproduzida por qualquer meio sem autorização por escrito da Editora Universidade deBrasília.Planejamento Editorial: Eiiti SatoTradução: Anah de Melo FrancoProg. Visual e Diagramação: Paulo PedersolliAssistentes: Ana Cláudia Bezerra de Melo FilterRachel Couto Falcão Freire GomesMorus, ThomasUtopia I Thomas More; Prefácio: João Almino; Tradução: Anah de Melo Franco. - Brasília: Editora Universidade de Brasília: Instituto de Pesquisa de RelaçõesInternacionais, 2004.p. - (Clássicos IPRI)ISBN: 85-230-0783-0 (Editora UnB)ISBN: 85-7631-017-1 (FUNAGnPRI)1. Política. 2. More, Sir Thomas, Santo, 1478 - 1535. Utopia. I. Almino, João.11. Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais. 111. Título.CDU: 32Efetuado o Depósito Legal na Fundação Biblioteca Nacional Conforme Decreto nO 1.825, de 20.12.1907

SUMARIOPrefácio - A Utopia é um império - João AlminoIXApresentação à edição de 1980. - Afonso Arinos de Melo Franco . XXXVNota dos EditoresXXXIXUTOPIALIVRO I - Discurso do notável Rafael Hitlodeu sobre a melhordas Repúblicas, registrado pelo ilustre Thomas More,cidadão e Vice-Xerife da gloriosa cidade de LondresLIVRO II - Discurso de Rafael Hitlodeu sobre a melhordas Repúblicas, registrado por Thomas More,cidadão e Xerife da cidade de LondresA ilha de UtopiaSuas cidades, especialmente AmaurotaDos MagistradosDos OfíciosA vida social e econômica dos utopiensesAs viagens em UtopiaO ouro e a prataA filosofia moral em UtopiaO prazer do aprendizadoDos escravosO cuidado com os enfermosSobre o casamentoPunições, procedimentos legais e costumesAs relações exterioresSobre a guerraAs religiões dos utopienses, '3474751545562687074889192939699101112

VIIIUTOPIAAs CARTAS DOCÍRCULO HUMANISTADe Thomas More para Peter Giles135De Peter Giles paraJerome Busleiden139DeJerome Busleiden para Thomas More142De Guillaume Budé para Thomas Lupset145De Erasmo de Rotterdam paraJohannes Froben152De Thomas More para Peter Giles153De Erasmo de Rotterdam para Ulrich von Hutten155

PREFAcIOA UTOPIA É UM IMPÉRIOAs relações entre os povos na obra clássicade Thomas MoreJOÃO ALMINO*MUITO SE TEM COMENTADO SOBRE UTOPIA, livro publicado em 1516,24 anos depois do descobrimento da América, pelo escritor inglêsThomas More (1478-1535), que aos 57 anos seria decapitado porordem de Henrique VIII. Mas não conheço trabalho que se tenha detidosobre as relações externas da ilha imaginária da Utopia, termo que,em grego, significa "lugar nenhum". Há muito em Utopia de ThomasMore a ser refletido sobre esse tema. Juntamente com a justiça, a paznão apenas interna, mas também entre os povos, é o bem supremoque norteia a exposição do autor inglês. Vale a pena, assim, fazer umaleitura sistemática sobre os temas da paz e da guerra, das finanças edo comércio entre os povos, da colonização e da imigração naquelelivro, para dele extrair conclusões sobre seu sentido político e ftlosóficono campo das relações internacionais.É pertinente observar que o relato se passa enquanto seu autor,segundo diz no próprio texto, faz uma pausa em meio a uma negociaçãodiplomática. A data não vem explicitada no texto, mas sabe-se que éem maio de 1515 que Henrique VIII o envia como embaixador aFlandres, na defesa dos interesses dos mercadores de Londres, a fim. João Almino é diplomata e escritor.

xJOÀO AL;\fINOde dirimir litígio entre o monarca inglês e o príncipe de Castela, futurorei Carlos V, que havia herdado os Países Baixos. A disputa gira emtorno da proibição holandesa da importação de lã inglesa. HenriqueVIII retaliara com um embargo contra as exportações de lã holandesa.Agora, o príncipe Carlos ameaça com a expropriação de parte da frotainglesa. Após duas reuniões em Bruges, permanece o impasse. Osembaixadores do príncipe decidem, então, como afirma More no iníciodo Livro Primeiro de Utopia, viajar a Bruxelas em busca de instruções.Neste intervalo das negociações, More vai a Antuérpia, onde recebenumerosas visitas, entre as quais a de Peter Giles. Este personagemverídico, humanista menor do círculo de Erasmo e grande amigo de More,o apresenta ao português Rafael Hitlodeu, o personagem que Morecriou para narrar a maior parte de sua história, principalmente sob a formade diálogo.A observação dessas duas cidades estrangeiras, Bruges e Antuérpia,possivelmente influenciou a descrição de Amaurota, a capital da ilha daUtopia. Eram, à época, cidades prósperas, que exibiam um bom modelourbano.É possível que More tenha, de fato, redigido grande parte deseu livro no intervalo das negociações. Contudo, se o tempo passadoda narrativa (aquele em que ocorre a história da conversa entre More,Peter Giles e Rafael Hitlodeu) coincide com o da permanência de Morenaquelas cidades e com aquele intervalo negociador, o tempo presenteda narrativa (aquele em que o texto foi finalizado) é posterior. Isso oautor deixa claro no primeiro plano de sua exposição, ao dirigir-se aseu amigo Peter Giles, a quem envia seu relato da conversa que ambostiveram com o navegador português.More é, concomitantemente, o narrador "atual" dos diálogospassados, e o personagem que, no passado, dialogava com Hitlodeu.A maior parte do tempo, narra a história que Rafael Hitlodeu contou.E quem é este personagem imaginário e principal? Não por acaso teriaabandonado seus irmãos e sua propriedade em Portugal e se juntado aAmérico Vespúcio em três de suas "quatro" viagens (historiadores até

UTOPIAXIhoje debatem se terão sido apenas duas ou, no máximo, três essas viagens).Ora, em 1507 havia sido publicado, com grande repercussão, o MundusNovus, relato das viagens de Vespúcio no qual este descrevia povosselvagens que, como o da ilha da Utopia, não valorizavam o ouro nemas pérolas, viviam de acordo com a natureza (na Utopia, poderíamosacrescentar também "de acordo com a razão") e eram mais epicuristasque estóicos. Ao lado de Santo Agostinho e Platão, Vespúcio é, portanto,uma referência para More.A Utopia é uma obra que pode ser interpretada sobretudo comouma crítica à Inglaterra das primeiras décadas do século XVI. E nãoapenas à Inglaterra, mas também a outros estados europeus, como aFrança, explicitamente citada. O contraste entre, de um lado, a ilhaimaginária e, de outro, não apenas esta outra ilha, a Inglaterra, mastambém, de forma mais ampla, a Europa, fornece as bases dessa crítica.Agindo segundo a razão, e mesmo sem conhecer o cristianismo, osutopienses vivem melhor do que os europeus e foram capazes de construirinstituições que merecem respeito e admiração, enquanto os povoscristãos não conseguem pôr em prática as virtudes consagradas porsua religião e se destroem uns aos outros. Os utopienses comportam-se,no fundo, como se fossem verdadeiros cristãos; fazem o que os europeusdeveriam fazer, se seguissem seus próprios preceitos cristãos.Essa crítica moral aos estados europeus passa também pela críticaa suas relações internacionais. Uma delas se dirige a seu belicismo e àsua ânsia desmesurada e descabida de conquistar novos territórios,em vez de bem administrar os que já possuem. Pode ser ilustrada pelapassagem em que More sugere que Rafael venha a ser conselheiro dealgum rei. Em sua resposta, Rafael explica que as virtudes que possuinão serviriam para assuntos de Estado, pois os príncipes preferem asquestões militares, das quais ele nada sabe nem deseja saber, às artesbenéficas da paz. Argumenta que seria, assim, inútil vir a ser conselheirode um rei. Se fizesse parte do Conselho do rei da França, por exemplo,e se lhe indagassem sobre as combinações e intrigas para conservarMilão, sobre como reter a amizade do reino de Nápoles e outras

XIIJ()À()ALMINOquestões que tivessem a ver com a ocupação de outros países, nãoseria escutado se aconselhasse o rei a abandonar a Itália; se chamassea atenção para a extensão do próprio reino da França que, de tão grande,quase não pode ser administrado comodamente por um só homem; seperguntasse por que haveria o rei de desejar anexar novos territórios;se dissesse que as aventuras guerreiras esgotam o erário e destroem ospovos.A referida passagem pode ser considerada uma indicação sobreo sentido atribuído por More a seu próprio livro. De fato, da mesmaforma como seria inútil para Rafael aconselhar os reis sobre a boapolítica, seria inútil apontar a Utopia como exemplo para a Europa. Écomo se More dissesse: sei que não serei ouvido, pelo menos não pelosgovernantes, mas ainda assim eis meu relato. Busca com isso um efeitoretórico. Os comentários acima, de Rafael, se coadunam com aafirmação de More ao final do livro, quando, ao comentar que há naRepública da Utopia muitas coisas que desejaria ver em "nossas cidades",conclui: "coisa que mais desejo do que espero."O relato deixa claro que o orgulho é o motor da guerra. Rafaelchama de insanos os governantes por acreditarem que o bem-estar deseus países somente pode ser garantido por um exército forte e numeroso,constantemente em prontidão, parecendo até que buscam a guerrapara exercitar as tropas. Os exércitos seriam mantidos pelos príncipeseuropeus para alimentar suas glórias, às custas dos súditos.Essa crítica veemente às guerras de conquista e às expansõesterritoriais terão certamente influenciado outros pensadores. Rousseau,por exemplo, em seu comentário ao Projeto da Paz Perpétua do Abadede Saint-Pierre, reconhecia que aquele projeto, embora sensato, seriamenosprezado pelos governantes europeus, mais interessados na guerrae na expansão de seu próprio poder do que no bem de seus súditos.Há aqui um paralelismo com o argumento de Rafael segundo o qualquanto menos os súditos possuem, tanto melhor para o soberano. Estese sente mais seguro quando aqueles não têm demasiadas riquezasnem gozam de liberdade excessiva. As riquezas e a liberdade tornariam

UTOPIAXIIIos súditos menos pacientes para suportar a dureza e a injustiça, enquantoa miséria e a pobreza debilitariam os ânimos e os tornariam cordatos epacientes, abafando o espírito de rebeldia, contrariamente à crença,hoje em dia corrente, de que a miséria e a opressão são socialmenteexplosivas e podem gerar revoltas.Assumamos a ficção de More para analisar as relações da ilhada Utopia, seja com a Europa, seja com os outros povos de seu própriomundo utópico.Autonomia) autodeterminação e as relações com as nações vizinhasSobre as relações com a Europa, há pouco no livro de More. Masesse pouco é significativo, pois lança um alerta sobre o sentido dacolonização européia de terras ocupadas por povos considerados primitivose relativiza a importância da difusão da fé cristã, por meio da catequese.Em primeiro lugar, há a menção àqueles europeus que gostariam decolonizar a Utopia, e sobretudo, de catequizar seu povo. More contrastaas boas intenções dos colonizadores com sua cegueira em relação àsqualidades da Utopia. Deixa transparecer que não veria vantagem nessacolonização. É como se dissesse: é assim que nós, europeus colonizadores,agimos, quando pode ser que o povo colonizado tenha atingido umgrau de civilização maior do que o nosso, embora com outra religião eoutros costumes.É provável que esteja sendo irônico quando se refere às sementesda religião cristã que felizmente já teriam sido lançadas na Utopia. Apropósito das boas intenções, cita o caso de um professor de Teologiaque quer ser um enviado do Papa àquela ilha para aí desenvolver eexpandir o cristianismo, fazendo-o por zelo piedoso e não pelo desejode lucros ou honrarias.O contexto externo é fundamental para a própria fundação daUtopia. De fato, segundo o relato de Rafael, a Utopia é uma criaçãoestrangeira, ou seja, originou-se com a conquista de um invasor, chamadoUtopos, que deu nome ao novo país. Quando chegara, ali encontrara

XIVJOÃO ALMINOum povo primitivo. Presume-se que, sem esta conquista e o choque queela terá provocado, a ilha jamais teria atingido o alto estágio de civilizaçãode que goza.Embora o ato fundacional tenha se assentado sobre a exposiçãoda ilha ao que veio de fora, a superação do estágio primitivo se deranão pela abertura ao mundo, mas pelo fechamento. Nada mais ilustrativodisso do que a decisão do conquistador, logo após sua vitória, de mandarcortar o istmo de quinze mil passos que unia o país ao continente.A Utopia aspira, acima de tudo, quanto as suas relações com oresto do mundo, a independizar-se e tornar-se auto suficiente, reduzindo,para isso, sua exposição externa. Na verdade, segundo depreende-seda narrativa de Rafael, já teria conquistado essa situação. Trata-se deuma visão contrária à que, séculos depois da publicação do livro deMore, viria a ser considerada "liberal". Não apenas há, no mundoutópico, pouco apreço pela abertura externa. Nele não há, tampouco,qualquer noção do que hoje se chama "interdependência".Igualmente no plano cultural, a Utopia é uma ilha, com costumesmuito diferentes dos de outros povos. Para exemplificar este ponto,bastaria assinalar o ridículo a que se expuseram os embaixadoresanemolianos (de país muito distante), quando chegaram à Utopiavestidos de ouro e, portanto, cobertos com o que constitui naquelailha o material para o suplício dos escravos ou um brinquedo dascrianças. Os utopienses viram no explendor dos visitantes umaexibição vergo-nhosa. Deixavam passar com grande indiferença osembaixadores, a quem tomavam por escravos. Reverenciavam, por outrolado, os criados, tomando-os por senhores.Essas diferenças culturais e o fechamento relativo da Utopiaao exterior não significam, porém, que os utopienses não se interessempor outros povos ou pelo que se passa alhures. Ao contrário, sãoreceptivos aos visitantes estrangeiros. Rafael afirma, por exemplo, quequem chega como visitante, se sabe fazer-se apreciar por seus dons deinteligência ou pela experiência adquirida em viagens, é recebido comgrande benevolência, pois os utopienses gostam de ouvir o que se

UTOPIAxvpassa no mundo. Além disso, assimilam o que há de melhor noutrascivilizações, como quando os romanos e egípcios sobreviveram aonaufrágio em suas costas, em 315 d.C. Da mesma forma, quando Rafaellhes fala da literatura e da ftlosofia gregas, reagem com grande interesse.Interessam-se pelo estrangeiro não apenas como assimiladores de culturae conhecimento, mas também e sobretudo em outro sentido: crêemque os outros povos lhes serão gratos por irradiarem e distribuírem apaz, a riqueza e a felicidade, se necessário por meio da guerra.A Utopia tem superioridade inconteste sobre os demais povos.Coloniza os vizinhos, que se deixam colonizar e, por admirar suas virtudes,pedem-lhes administradores. A idéia transmitida por Rafael é a de queos povos assim assistidos pela Utopia acabam tendo a melhor formade governo, pois a saúde e a ruína dos Estados depende dos costumesdos administradores. O melhor administrador é o que não se corrompe.Ora, os utopienses não se vendem por dinheiro (inútil, por não tervalor na Utopia) e, sendo estranhos aos cidadãos do país administrado,não cedem por afeto nem perseguem por inimizade.Não ocorre a More (ou a seu personagem Rafael) questionar-sesobre o valor da autodeterminação e da soberania para povos quequerem ser governados pelos utopienses por admirar suas virtudes.Estes povos subordinados, governados pela Utopia, são chamados de"aliados". Outros aos quais os utopienses outorgam benefícios são"amigos". Nem aliado, nem amigo é considerado pela Utopia um seuigual. Ou seja, se na relação entre a Europa e a Utopia, More procurou,através do relato de seu personagem Rafael, relativizar a superioridadeeuropéia, na concepção do próprio mundo da Utopia não imaginou aexistência de povos que pudessem rivalizar com aquela ilha em riqueza,felicidade, poderio financeiro, tecnológico e militar, em qualidadesmorais ou virtudes políticas.Segundo Rafael, os utopienses não fazem alianças formais. Têmbaixo apreço por tratados internacionais, pois observam que outrasnações os rasgam com a mesma facilidade com que os celebram. Oshomens seriam naturalmente gregários, e não haveria por que esperar

JOÀO ALMINOXVIde quem não dá valor aos laços naturais que o dê a simples palavras.Ou seja, os homens seriam mais fortemente unidos por sua boa vontadedo que pelos tratados; pelos seus sentimentos ou seu coração, do quepor protocolos ou palavras escritas. Somente a natureza pode estar nabase da amizade entre as nações. Se ela não torna o homem amigo dohomem, os tratados ou as alianças não seriam capazes de fazê-lo. Lockevai mais tarde defender posição semelhante nos seus Dois Tralados sobreo Governo, de 1690.Ao contrário de seu contemporâneo Maquiavel, que via umadisposição natural para o conflito entre os vizinhos, More julga absurdoque homens separados por apenas um morro ou um rio não estejam ligadospor nenhum laço da natureza; que tenham nascido inimigos naturais eportanto, ataquem uns aos outros salvo quando impedidos por tratados.A este propósito, através do relato de Rafael, é satírico ao comentara prática dos estados europeus, ao contrastá-la com a dos utopienses.Descreve-a como o exato oposto da realidade: "Em verdade, na Europae, principalmente, nas terras em que prevalece a fé cristã, os tratadossão sagrados e invioláveis, em parte devido à virtude e à justiça dospríncipes e em parte, também, devido ao temor respeitoso que inspirao Sumo Pontífice. Os papas não prometem nada que não cumpramconscienciosamente e, da mesma forma, obrigam os outros soberanosa manterem suas promessas, usando de todos os meios e, àqueles quetergiversam, empregam a censura pastoral e severas sanções."A defesa e a guerraAlém de amigos e aliados (sem alianças formais, como ficou claro),os utopienses têm inimigos (ou inimigos potenciais), dos quais é precisodefender-se. Algumas das medidas que adotam são de precaução. Hápelo menos quatro tipos de obstáculos físicos de grande importância paraa defesa da ilha:1) em primeiro lugar, há obstáculos com os quais o potencial inimigose defronta quando tenta se aproximar da ilha. Num lado, como se

UTOPIAXVIIafirma no início do Livro Segundo, há pedras perigosas, ocultas sob aágua, que impedem a chegada de navios. Do outro lado, há váriosportos, mas sempre os pontos de fácil desembarque estão protegidospor meios naturais ou artificiais. Uns poucos defensores podem, porconseguinte, facilmente rechaçar até mesmo um exército poderoso;2) em segundo lugar, existe uma proteção à fonte de água queserve a capital. Trata-se de fortificações ligadas aos muros da cidade.A fonte em questão dá origem a um rio muito agradável que atravessaAmaurota para desembocar no rio Anidro. No caso de ataque inimigo,seu curso não pode ser interrompido, desviado, nem envenenado;3) em terceiro lugar, uma muralha alta e grossa rodeia a capital.Por três lados está circundada por um fosso sem água, largo e profundo,repleto de urtigas e de espinhos. No quarto, o rio serve de fosso;4) em quarto lugar, erguem-se edificações, como medidas dedefesa, no próprio campo de batalha. Trata-se de medidas de defesatomadas em plena guerra. Os utopienses cercam os campos com fossoslargos e profundos. Os escombros dessas escavações são jogados parao interior dos muros. Como todo o exército participa desse trabalho,constróem rapidamente poderosas fortificações que circundam umagrande extensão de terra.Além disso, há que destacar o grande avanço técnico da Utopia,que lhe permite investir na fabricação e aperfeiçoamento de suas armas.Os utopienses também fazem uso inteligente de armas simples. Paracombater à distância, utilizam flechas, que tanto os cavaleiros quantoos soldados de infantaria sabem lançar com segurança e força. Nasbatalhas, em vez de utilizarem espadas, usam machados cujo fio e pesossão tais que, dependendo da direção do golpe, ocasionam a morte. Asarmaduras são fabricadas com técnicas especiais: São resistentes enão atrapalham nem os movimentos nem os gestos, de tal forma queos soldados utopienses podem até nadar armados, sem o menorinconveniente. Além disso, as armas de maior porte, escondidas paraevitar a divulgação prematura dos planos de guerra, são engenhosas,facilmente transportáveis e podem ser viradas para todas a direções.

XVIII]oÃoALMINOMas a visão inteligente e ampla da defesa não se limita a seusaspectos físicos. A melhor forma de defesa é, pela descrição de Rafael,a solidez das instituições e a coesão interna da Utopia. É a concórdiainterior e essa solidez das instituições que impedem que a inveja depríncipes vizinhos perturbe e sacuda o império utopiense. Sempre quetentaram, foram rechaçados. Essas características explicam por queoutros não podem utilizar em relação à Utopia determinadas táticasde guerra que os utopienses empregam contra eles e que contam coma colaboração de cidadãos do próprio campo inimigo, táticas a que voume referir mais adiante.Finalmente, os utopienses exercitam-se na arte da guerra epreparam-se para sua eventualidade. Assim, estão bem preparados,material e espiritualmente, para enfrentar o inimigo.Apesar de abominarema guerra e a despeito de tudo o que fazem para evitá-la, ela parece serparte de seu cotidiano. Da mesma forma que ocorre na Europa, representaum risco permanente. Embora More tenha criticado os estados europeuspor manterem exércitos em pé de guerra, a Utopia também treinapermanentemente homens e mulheres para lutar.Alguns dos comentários de More fazem recordar o pensamentode seu amigo Erasmo. Por exemplo, na linha do que este afirma emDulce Bel/um Inexpertis, Rafael diz que os utopienses julgam a guerrauma paixão digna dos animais ferozes, embora seja menos freqüenteentre as espécies animais que entre os homens.A guerra é entendida como um recurso extremo. Sempre sãopreferíveis as soluções negociadas. Quando guerreiam, os utopiensesalmejam apenas que lhes seja dada a satisfação que, se já tivesse sidoobtida, impediria a guerra. Ao contrário de quase todos os demais povos,os utopienses crêem que nada há de mais desprezível que a glória noscampos de batalha. Assim, jamais empreendem a guerra por motivo fútil.Há, porém, seis razões para que a Utopia entre em guerra.Em primeiro lugar, há guerras fundamentalmente defensivas paraproteger o próprio território. Entre estas, existem as que podem serdefinidas como ataquespreventivos, para evitar o combate em seu próprio

UTOPIAXIXterritório. Não há referência na Utopia neste caso à declaração de guerrapor parte do inimigo, nem à necessidade de se comprovar a mobilizaçãodas tropas do adversário. É suficiente que os utopienses avaliem o perigoinimigo como iminente, ou seja, que saibam (deveríamos acrescentar"ou julguem saber") da intenção de algum príncipe de invadir a Utopiacom seu exército. Neste caso, vão ao encontro do inimigo com grandescontingentes. Trata-se de tema que será, em 1625, desenvolvido peloholandês Hugo Grotius, em O Direito da Guerra e da Paz (De Jure Bel/iac Pacis), especialmente no capítulo 1 do Livro II, sobre a defesa dapessoa e da propriedade. Embora reconhecendo o direito de antecipare prevenir o ataque inimigo, Grotius estabelece como condição para oexercício desse direito o perigo imediato; critica, com base em Tucídidese outros, o recurso à ação preventiva baseada em qualquer grau demedo ou em suspeitas vagas; recorre ainda a exemplos da literatura,para mostrar que, para prevenir as supostas intenções dos adversários,têm-se cometido as maiores crueldades contra inocentes; finalmentedefende que, se não há violência imediata, o conhecimento prévio doperigo deverá levar à aplicação de remédios preventivos legais que nãoa guerra.Em segundo lugar, há guerras defensivas para proteger o territóriode nação amiga, se o inimigo a invadiu. O texto de More não faz mençãoà necessidade de solicitação por parte dos protegidos. Portanto, aparentemente a Utopia pode tomar a decisão sozinha.Em terceiro lugar, os utopienses empreendem guerras "porhumanidade" para livrar um povo da servidão e do jugo de um tirano,algo semelhante ao que hoje se tem chamado "intervenção humanitária".Não há menção de More à necessidade de consulta a esse povo, nemde uma solicitação sua para tal fim.Um quarto tipo de guerra é provocado pela morte ou ferimentoinjusto de algum cidadão da Utopia, se o que hoje conhecemos como"extradição" dos culpados lhe é negada. Diz Rafael: " . se um deseus cidadãos vier a ser morto ou mutilado no estrangeiro, seja por umgoverno ou por um particular, primeiramente os utopienses enviam

xxJ()À()AI.MIN()uma missão para avaliar as circunstâncias, em seguida solicitam aentrega dos culpados. Se a demanda não for atendida, não permitemque a questão seja postergada e declaram guerra imediatamente. Se osculpados forem entregues, sua punição será a morte ou a escravidão."Em quinto lugar, há guerras de vingança e para exercer represálias,quando foram causados prejuízos a nações amigas. As razões podemser comerciais, financeiras (tais como a falta de um pagamento) oupilhagem cometida por invasão armada. Há casos relacionados com ainterpretação do direito - do que é justo ou injusto na aplicação dalei. Num mundo em que não há a noção de um direito internacional emuito menos a idéia de um direito internacional consensual, as leisnacionais de aplicação internacional podem ser consi

Thomas More (1478-1535), que aos 57 anos seria decapitado por ordem de Henrique VIII. Mas não conheço trabalho que se tenha detido sobre as relações externas da ilha imaginária da Utopia, termo que, em grego, significa "lugar nenhum". Há muito em Utopia de Thomas More a ser r