HISTÓRIA INTELECTUAL LATINO-AMERICANA - PUC-Rio

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HISTÓRIA INTELECTUALLATINO-AMERICANAITINERÁRIOS, DEBATES E PERSPECTIVASORGANIZAÇÃOMaria Elisa Noronha de Sá

HISTÓRIA INTELECTUALLATINO-AMERICANA1

ReitorPe. Josafá Carlos de Siqueira, S.J.Vice-ReitorPe. Francisco Ivern Simó, S.J.Vice-Reitor para Assuntos AcadêmicosProf. José Ricardo BergmannVice-Reitor para Assuntos AdministrativosProf. Luiz Carlos Scavarda do CarmoVice-Reitor para Assuntos ComunitáriosProf. Augusto Luiz Duarte Lopes SampaioVice-Reitor para Assuntos de DesenvolvimentoProf. Sergio BruniDecanosProf. Paulo Fernando Carneiro de Andrade (CTCH)Prof. Luiz Roberto A. Cunha (CCS)Prof. Luiz Alencar Reis da Silva Mello (CTC)Prof. Hilton Augusto Koch (CCBS)2

HISTÓRIA INTELECTUALLATINO-AMERICANAITINERÁRIOS, DEBATES E PERSPECTIVASORGANIZAÇÃOMaria Elisa Noronha de Sá3

Editora PUC-RioRua Marquês de S. Vicente, 255Projeto Comunicar, casa Agência/Editora22453-900 Rio de Janeiro, RJT/F 55 21 3527 1760 / 55 21 3527 oConselho Gestor:Augusto Sampaio, Cesar Romero Jacob, Fernando Sá, Hilton Augusto Koch,José Ricardo Bergmann, Luiz Alencar Reis da Silva Mello, Luiz Roberto Cunha,Paulo Fernando Carneiro de Andrade e Sergio BruniRevisão de originais: Beatriz DinisRevisão de prova paginada: Cristina da Costa PereiraProjeto gráfico: Regina FerrazTodos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzidaou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônico ou mecânico,incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dadossem permissão escrita das Editoras.ISBN: 978-85-8006-209-0 EDITORA PUC-RIO, Rio de Janeiro, Brasil, 2016.História intelectual latino-americana : itinerários, debates eperspectivas / organização: Maria Elisa Noronha de Sá.– Rio de Janeiro : Ed. PUC-Rio, 2016.272 p. ; 23 cmInclui bibliografiaISBN: 978-85-8006-209-01. América Latina – História. 2. Intelectuais – Atividadespolíticas – América Latina. I. Sá, Maria Elisa Noronha de.4

AgradecimentosAos colegas professores de história da América de outras universidades do Rio de Janeiro e do país que trabalham com temáticas dehistória intelectual e que atenderam prontamente ao meu chamado (inclusive trazendo seus orientandos ou patrocinando a vindadeles); e ao professor Jorge Myers, com quem construí uma parceria importante há muitos anos.Aos orientandos de mestrado e doutorado que também toparam apresentar e discutir os resultados ainda parciais de suas pesquisas.Ao Departamento de História, ao Programa de Pós-Graduaçãoem História Social da Cultura e ao Laboratório de Teoria, Historiografia e História Intelectual – em especial aos professores Marco Antonio Villela Pamplona e Diego Antonio Galeano, que comentaram alguns dos trabalhos apresentados, aos alunos e aopessoal da secretaria. A Anair, Claudio, Cleuza e Moisés, peloapoio logístico, acadêmico, financeiro e pessoal.Aos alunos de iniciação científica (Programa Institucional deBolsas de Iniciação Científica – Pibic), aos bolsistas do ConselhoNacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) eda Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estadodo Rio de Janeiro (Faperj) e aos voluntários, Juliana Sabatinelli,James Gerald Coutinho Marko, Beatriz Gonçalves dos Santos eDaniela Vidal, que foram fundamentais não só na organização eno bom funcionamento do seminário, como, principalmente, tiveram e têm uma participação importante no desenvolvimento dapesquisa do Programa Jovem Cientista do Nosso Estado (jcne).À Faperj que, com a bolsa jcne, permitiu a realização desseencontro.5

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SumárioApresentaçãoHistória intelectual latino-americana: itinerários,debates e perspectivas Maria Elisa Noronha de Sá91. Músicas distantes. Algumas notas sobre a históriaintelectual hoje: horizontes velhos e novos, perspectivasque se abrem Jorge Myers232. Era necesario escribir para el pueblo: a Geração de 1837entre frivolidades e a busca de simpatias políticas emLa Moda (1837-1838) José Alves de Freitas Neto573. “Ojeada sobre el Brasil”: impressões de Sarmientosobre o Império do Brasil em meados do século xix79 Maria Elisa Noronha de Sá4. Estratégias de reinserção: a Revista del Río de la Plata95como instrumento de reinserção de Juan María Gutiérreze Vicente Fidel López na cena política bonaerense Bruno Passos Terlizzi5. História política, imprensa e biografia: conservadorismo 109e governo representativo em Alberdi (1840-1850) Affonso Celso Thomaz Pereira6. Temas republicanos em José Martí Fabio Muruci1357. Modernidade e exílio no epistolário martiano.Notas sobre a produção das escenas norteamericanas149 Lucas Machado dos Santos8. Fundando a nação a partir do Deserto: relações entreEstado argentino e grupos indígenas no pré-expansãoterritorial Alessandra Seixlack Gonzalez7177

9. ¿El gaucho está muerto? Os embates daintelectualidade argentina frente ao criollismo nocontexto do Centenário de Independência Ivia Minelli20310. Reflexões sobre o conceito de raça no pensamentode Fernando Ortiz Fernando Luiz Vale Castro21511. O trabalho com revistas de humor gráfico e outrosdesafios para a história intelectual latino-americana235 Priscila Pereira12. “A hora da América”: Brasil e EUA no projetocontinental das revistas Cuadernos Americanose Repertorio Americano (1940-1949) Bárbara de Almeida Guimarães8249

APRESENTAÇÃOHistória intelectual latino-americana:itinerários, debates e perspectivasMaria Elisa Noronha de Sá *Este livro reúne os textos apresentados no Seminário História intelectual latino-americana: itinerários, debates e perspectivas ocorrido na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (puc-Rio), em junho de 2016. O seminário foi organizado como partedas atividades desenvolvidas no âmbito do projeto “Intelectuais ea constituição de um novo vocabulário político na América Ibé rica no século xix”, com financiamento do Programa Jovem Cientista do Nosso Estado (jcne) da Fundação Carlos Chagas Filho deAmparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj), de agosto de 2013 a agosto de 2016.Este projeto de pesquisa insere-se no campo da história intelectual e teve como tema geral o estudo comparativo entre o pensamento de alguns intelectuais considerados autores e atores privilegiados nos processos de independência e na construção dosestados nacionais na América Ibérica ao longo do século xix.O objetivo foi analisar como determinadas ideias, palavras e conceitos foram criados e/ou ressignificados neste momento de construção de novas identidades nacionais e continentais, constituindo um novo vocabulário político no mundo ibero-americano. Umvocabulário em boa medida comum ao mundo atlântico, mas queapresentou, historicamente, em função das circunstâncias políticas e sociais peculiares de cada área e de cada país, modalidades àsvezes fortemente diversas de entender as práticas, categorias e instituições da vida política.* Professora de história da América do Departamento de História da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (puc-Rio).9

MARIA ELISA NORONHA DE SÁO seminário reuniu pesquisadores – professores, doutorandose mestrandos – de diferentes instituições e programas de pós-graduação nacionais (puc-Rio, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Universidade de São Paulo, Universidade Federal do Es píritoSanto, Universidade Estadual de Campinas) e internacionais (Universidad Nacional de Quilmes, Argentina) que trabalham com ahistória intelectual latino-americana e desenvolvem estudos nessecampo para debater as pesquisas em andamento. Além do trabalhoconjunto entre diferentes instituições de ensino e distintos pro gramas de pós-graduação, esta foi uma oportunidade para discu tirmos, no interior do Programa de Pós-Graduação em HistóriaSocial da Cultura da puc-Rio e da sua linha de pesquisa Teoria,Historiografia e História Intelectual, o “estado atual” dos estudosde história intelectual sobre temáticas latino-americanas no Brasil.Nos últimos anos, a história intelectual se converteu em pontode encontro de distintas tradições, da história política à crítica literária, da história dos conceitos aos estudos da cultura urbana, dahistória das ideias à história das linguagens. Escritores consagrados e leitores anônimos, revistas de pouca circulação e projetoseditoriais de ampla repercussão, ideias, imaginários, materialidades e redes são exemplos dos objetos incluídos no expansivo campo da história intelectual. O presente livro propõe percorrer alguns de seus núcleos problemáticos mais relevantes, vinculandoa reflexão teórica e historiográfica a um conjunto de trabalhosrepresentativos de distintas estratégias de abordagem da históriaintelectual que se debruça sobre temáticas latino-americanas.São conhecidas as dificuldades com as quais nós, historiadores,nos defrontamos ao problematizar as relações entre ideias e história na construção de certo tipo de conhecimento histórico no qualas ideias se constituem como objeto principal. Não se pretendediscutir aqui o conjunto de perspectivas teóricas e metodológicascontemporâneas que conformam e disputam o campo de inves tigações históricas acerca do pensamento e que se apresentamatravés de múltiplas denominações, tais como: história das ideias,história intelectual, história social das ideias, história cultural, his10

APRESENTAÇÃOtória dos discursos, das ideologias, das linguagens etc. Importapensar como tais perspectivas – ao definirem a natureza de seucampo de estudos e os modos adequados de pesquisa e elaboraçãointelectual – podem nos fornecer não um método único e eficiente a ser aplicado, mas, sim, delimitar um horizonte de reflexõessobre as possibilidades e os problemas com os quais nossas pesquisas se defrontam neste campo.Boa parte dos historiadores prefere, hoje, a denominação“história intelectual”, cujo campo abrangeria o conjunto das formas de pensamento, em lugar da tradicional “história das ideias”.O consenso é significativo quando se trata de afirmar as conexõesentre a história intelectual e a história social e, ainda, os laçoscom a antropologia e a sociologia. A história intelectual abarcaria, assim, uma preocupação com a articulação das ideias às suascon dições externas – “com a vida do povo que é o seu portador”(Falcon, 1997: 96). Não se trataria mais de uma história de ideiasdesencarnadas, que existem por si, mas de ideias relacionadas aum determinado contexto. Uma consequência importante disso éa tendência da história intelectual para romper os limites disciplinares estabelecidos, já que visa inserir o estudo das ideias e atitudes no conjunto das práticas sociais.Nos últimos 20 anos, ampliou-se, entre os historiadores, a discussão em torno de enfoques que pretendem ir além das fronteirasestabelecidas pelo Estado-Nação moderno. O debate tem questionado as propostas da mais tradicional história comparada e temabarcado concepções mais recentes, como as histórias conectadas,a história transnacional e as histórias cruzadas. Da mesma maneira que o ambiente posterior à primeira Guerra Mundial explica,em parte, a defesa da história comparada e as críticas de histo riadores como Henri Pirenne e Marc Bloch ao confinamento deoutros pesquisadores dentro dos espaços nacionais, os tempos recentes, da chamada globalização, propiciam a discussão sobre aconstrução de histórias conectadas, transnacionais ou cruzadas.Estas questionam não só o ponto de vista estritamente nacional,como também criticam a existência de um único centro irradia11

MARIA ELISA NORONHA DE SÁdor de poder e de saber e o estabelecimento de uma hierarquiaque deu à Europa, e mais recentemente aos Estados Unidos, umlugar de primazia, superior ao resto do mundo. Esta crítica aonacional encontra na historiografia do século xix um campo maisdo que profícuo. Estudar aquele tempo de “nacionalidades flutuantes”, quando as ideias e projetos de nação estavam sendo gestados e experimentados, quando as fronteiras do nacional eramfluidas, impõe ultrapassar a visão tradicional de uma históriacomparada que parta do nacional.Já se passaram, pelo menos, duas décadas do que poderíamoschamar de uma inflexão na história política latino-americana nosentido de valorizar o uso e o sentido da linguagem, os atores e osmeios de circulação e de produção de ideias. Os esforços de historiadores de diferentes partes do continente apontaram, entre outros caminhos, para uma crescente valorização da denominadahistória intelectual. Composto por 12 artigos, este livro pretendediscutir e apresentar ao público uma reflexão sore o “estado atual”dos estudos de história intelectual com temáticas latino-americanas no Brasil, uma perspectiva historiográfica que vem se ampliando de forma considerável nos últimos anos.***O artigo que abre a coletânea é o texto da conferência proferidapelo professor Jorge Myers, do Centro de História Intelectual daUniversidad de Quilmes, na Argentina, intitulado “Músicas distantes. Algumas notas sobre a história intelectual hoje: horizontesvelhos e novos, perspectivas que se abrem”. O autor analisa, demaneira densa e refinada, o que seria o campo da história intelectual no presente: um domínio de fronteiras frouxas, permeáveis eincertas, em cujo interior se entrecruzam e se sobrepõem numerosas correntes disciplinares. Assim, define a história intelectual,inicialmente, como uma forma de interrogar o passado que privilegia e enfatiza as formas de pensar, de discorrer e de imaginar queos seres humanos manifestaram em seu tempo. O artigo mostracomo essa vertente demarca um campo de indagação histórica12

APRESENTAÇÃOque se diferencia – tanto em seu método quanto em seu objeto –de duas perspectivas disciplinares que lhe são muito próximas: a“história das ideias”, em suas várias formulações tradicionais (desde a Kulturgeschichte e a Geistesgeschichte alemãs das décadas finaisdo século xix, até os defensores contemporâneos de um retorno,modernizado, ao projeto de Arthur Lovejoy e seus seguidores); e ahistória dos intelectuais, postulada no rastro da sociologia dosintelectuais (em suas versões elaboradas desde Karl Mannheim atéPierre Bourdieu e outros, posteriores).Ampliando seu esforço de definição, Jorge Myers afirma que ahistória intelectual consiste em uma exploração da produção douta realizada pelas elites letradas do passado, enfocada a partir deuma perspectiva que considera a própria condição de inteligibilidade histórica dessa produção como derivada de sua reinserção(por parte do pesquisador) em um contexto social e cultural –simbólico e material – historicamente específico que, na maioriados casos, será o contemporâneo dessa produção.Em seguida, o autor apresenta algumas linhas que o desenvolvimento da história do pensamento seguiu no período prévio àplena (ainda que provisória e contingente) consolidação da história intelectual como espaço disciplinar. O texto traz ainda umaexcelente reflexão sobre o aprimoramento do projeto analítico einterpretativo da história intelectual desde meados do século xx,no mundo, na América Latina e, principalmente, na Argentina.Por fim, Myers se propõe a ensaiar, para fins estritamente heurísticos e especulativos, uma tentativa de definição da história intelectual como é praticada (ou como deveria ser praticada) hoje.Então, afirma que, sem estar filiada a nenhuma posição teóricaexclusiva, a história intelectual refere-se às investigações que analisam os processos de produção de significados no interior de umasociedade, centrando sua análise tanto no resultado final dessesprocessos, com seus conteúdos – que, por sua própria natureza,estão abertos a uma pluralidade de interpretações –, quanto nosprodutores e nos contextos em cujo interior estão inseridos osdiscursos.13

MARIA ELISA NORONHA DE SÁOs quatro textos que se seguem tratam de temáticas que dizemrespeito à chamada Geração de 1837, na Argentina, e ao contextointelectual da região do Prata, no século xix.O artigo de José Alves de Freitas Neto, “Era necesario escribirpara el pueblo: a Geração de 1837 entre frivolidades e a busca desimpatias políticas em La Moda (1837-1838)”, analisa o periódicoLa Moda: gacetín semanal de música, de poesía, de costumbres, editado por Juan Bautista Alberdi, Juan María Gutiérrez e Rafael Corvalán, publicação que circulou em Buenos Aires entre 1837 e 1838.Seu intuito é compreender o lugar deste semanário nos estudossobre a Geração de 1837, com ênfase não só na percepção da vidacotidiana portenha e em suas representações simbólicas, comotambém na busca de seus editores pela conquista de um públicoleitor – principalmente mulheres e jovens.O texto explora um dos campos mais profícuos dos estudos dehistória intelectual contemporânea, o dos periódicos e seu papelna propagação de ideias culturais e políticas no século xix. Nocaso de La Moda, a tarefa torna-se mais instigante pois trata-se decolocar em evidência textos marginais ou “frívolos”, até poucotempo considerados menos relevantes no universo da história intelectual argentina, mas fundamentais para pensar as práticasda vida privada, a constituição de uma esfera pública no períodoe a criação de um repertório republicano num cenário no qualparecia que tudo estava por ser feito. O artigo aborda os temas e ascrises dos editores na construção de um imaginário público e patriótico que expressaria o progresso da humanidade e o “espíritoda nação”, bem como as ambiguidades e ironias diante do rosismo.Dos temas supostamente frívolos às divergências com o públicoleitor, La Moda é uma fonte pouco usual para compreender osalcances e estratégias dos editores, especialmente Juan BautistaAlberdi, na elaboração de um repertório intelectual que marcouo pensamento político e cultural da Argentina a partir da Geraçãode 1837.O artigo “‘Ojeada sobre el Brasil’: impressões de Sarmiento sobre o Império do Brasil em meados do século xix”, de Maria Elisa14

APRESENTAÇÃONoronha de Sá, analisa as imagens do Império do Brasil nos escritos de Domingo Faustino Sarmiento, especialmente nos artigospublicados em El Mercurio e em El Progreso, nos anos de 1842 e1844. A proposta é explorar, na chave da história intelectual e dashistórias cruzadas, os efeitos desses “olhares cruzados” na construção das representações identitárias da Argentina e do Brasil naprimeira metade do século xix.Observando os textos analisados, escritos alguns anos antes dapublicação do Facundo (1845), a autora sugere que, ao pensar sobre o Império do Brasil, Sarmiento parece ensaiar a sua interpretação fundada na dicotomia entre civilização e barbárie desenvolvida posteriormente naquele livro. O Brasil aparece como um paísdespovoado, deserto, que apresenta em muitas partes de seu território condições de vida próximas à selvageria, inclusive pela escravidão, ao mesmo tempo em que possui inúmeras cidades ricas,povoadas, com um estilo de vida semelhante ao da civilização europeia. Convivem, assim, dois modos de vida opostos e hostis entre si – o bárbaro e o civilizado, este último triunfante, pois apoiado na monarquia constitucional. A imagem do Brasil oscila entreum olhar negativo e um positivo, ao sabor dos diversos posicionamentos de Sarmiento com relação às políticas externa e interna doImpério e da nascente República Argentina, além do cambiantecontexto intelectual em cujo interior se articularam estas sucessivas miradas sarmientinas sobre o Brasil.Em “Estratégias de reinserção: a Revista del Río de la Platacomo instrumento de reinserção de Juan María Gutiérrez e Vicente Fidel López na cena política bonaerense”, Bruno Passos Terlizzibaseia-se nas noções de itinerário político e sociabilidades cru zadas para considerar a atuação de Juan María Gutiérrez (18091878) e Vicente Fidel López (1815-1903) à frente da edição e composição da Revista del Río de la Plata (1873-1878). A análise é feitaa partir dos trabalhos na constituição dos campos historiográficoe crítico-literário, como uma das principais ações intelectuais dosdois escritores argentinos da Geração de 1837 para se restabelecerem frente à comunidade político-intelectual bonaerense.15

MARIA ELISA NORONHA DE SÁO autor mostra como, inicialmente, Juan María Gutiérrez eVicente Fidel López apoiaram e participaram ativamente do governo da Confederação Argentina, liderada pelo caudilho JustoJosé de Urquiza, entre 1852 e 1862. Também revela como, depois,com a crise e a consequente queda do governo confederado dianteda pressão e da hegemonia político-militar de Buenos Aires, osdois letrados passaram por um período de ostracismo políticodentro da política provincial, empreendendo rumos distintos atéseu definitivo retorno à cena político-intelectual bonaerense apartir da década de 1870. Conjugando suas atividades docentesjunto à Universidade de Buenos Aires com as suas atuações políticas na legislatura provincial de 1872, Gutiérrez e López funcionaram, neste contexto, como analistas críticos das disputas facciosasentre mitristas e alcinistas, criando consenso e aceitação intelectualde suas figuras. Lançando mão da análise dos caminhos e abordagens da história dos intelectuais, Bruno Terlizzi busca compreender o impacto da grafosfera na produção de sentido e de autoridade entre os componentes da Geração de 1837 em um contextomarcadamente politizado, como foram os governos de Urquiza,Mitre, Sarmiento e Avellaneda, entre 1862 e 1880.No artigo “História política, imprensa e biografia: conservadorismo e governo representativo em Alberdi (1840-1850)”, AffonsoCelso Thomaz Pereira aborda a relação entre imprensa, biografiae história do discurso político na América Latina do século xix,produzindo um excelente trabalho de história intelectual na esteira da revalorização do papel da imprensa na constituição da arenapolítica no período.O autor concentra sua investigação na análise de dois textosdo argentino Juan Bautista Alberdi publicados no Chile, em seuperíodo de exílio: “Biografía del General don Manuel Bulnes. Presidente de la República de Chile”, escrito em julho de 1846, e “LaRepública Argentina 37 años después de su Revolución de Mayo”,de maio de 1847. Trata das condições específicas de produção epublicação dos artigos, de suas repercussões e, a partir disso, propõe uma discussão acerca de alguns aspectos centrais do discurso16

APRESENTAÇÃOrepublicano de Alberdi desenvolvido na fronteira de sua miradaentre Chile e Argentina em meados do século xix: a forma re presentativa de governo, o tema da oposição política e a defesado conservadorismo. Também analisa o que chama de giro transigente, uma defesa que Alberdi passa a fazer desde o Chile, a partirde 1847, de uma possibilidade de acordo entre os unitários, liberais e exilados com os federalistas e com Rosas. Seu argumentomove-se na direção de que o aprendizado político, elaborado noespaço público, produziu uma mudança de perspectiva em relaçãoà concepção da autoridade do poder e do sistema representativono interior de uma linguagem republicana. Em contraste com asperspectivas historiográficas que pensam o contexto político chileno dos anos 1840 como um modelo de paz e estabilidade, a análise do autor revela um campo tenso, em permanente negociaçãoe conflito, em que os limites da estabilidade, da democracia, daConstituição eram permanentemente estendidos e pressionadosde acordo com as disputas políticas e sociais que se apresentavam.Seguem-se dois artigos que trazem originais análises sobre opensamento e a biografia do intelectual cubano José Martí. O texto “Temas republicanos em José Martí”, de Fabio Muruci, analisaos fundamentos políticos do pensamento deste im portante intelectual, especialmente o tema do republicanismo e questões a elerelacionadas, como cidadania e noções de bem comum, que convivem com elementos mais característicos do pensamento liberal,como a liberdade individual e o direito de propriedade.Muruci analisa também a trajetória de estudos sobre a obrade José Martí numa perspectiva sincrônica e diacrônica, e ressalta como estes têm sido marcados por intensas divisões e disputas ideológicas que duram até hoje. Chama a atenção para o fatode que muitas vezes essas interpretações resultam em classificações potencialmente anacrônicas, ao usarem categorias e expectativas geradas durante a Guerra Fria. Neste sentido, entre as décadas de 1920 e 1950, os aspectos de sua obra relacionados com aaproximação aos Estados Unidos e a presença dos ideais liberaispredominaram; assim como, após a Revolução Cubana de 1959,17

MARIA ELISA NORONHA DE SÁinterpretações mais interessadas nas críticas martianas ao imperialismo norte-americano e em sua simpatia pelos movimentostrabalhistas ganharam destaque. O texto pretende, assim, recuperar a especificidade e a integridade do pensamento martiano, quetrabalhava com temas políticos sem as fronteiras construídas emperíodos posteriores.Em “Modernidade e exílio no epistolário martiano. Notas sobre a produção das escenas norteamericanas”, Lucas Machado dosSantos aborda alguns dos conflitos existenciais e pessoais relacionados diretamente à experiência de exílio do cubano José Martí,nos anos de sua residência em Nova York. A proposta do autor éenfocar a experiência do exílio, com o objetivo de compreender ahermenêutica através da qual Martí estabeleceu uma relação quealternou proximidade e distância nos modos de observação ecompreensão da sociedade norte-americana. Para isso, analisa oepistolário martiano, na tentativa, bem-sucedida, de se acercar doselementos mais subjetivos nos quais as crônicas foram diretamente embebidas. Nota que a linguagem pública empregada nas crônicas, por sua intensidade subjetiva, deixa entrever aspectos pessoais na interpretação daquela sociedade, que aparecem, por assimdizer, infiltrados em trechos surpreendentes, que saltam à vista doleitor desavisado. Deste modo, a comparação entre a linguagempessoal e o denominado caráter autobiográfico no epistolário ea linguagem pública exercitada nas crônicas leva-nos a entenderaté que ponto e de que maneira esta experiência pessoal do exíliointerferiu nas interpretações da sociedade norte-americana desenvolvida nas crônicas.Ao trabalhar com temáticas recentemente incorporadas aosestudos no campo da história intelectual, como a questão do território e das relações com os indígenas no período de construçãodos estados nacionais, Alessandra Seixlack Gonzalez, em seu texto“Fundando a nação a partir do Deserto: relações entre Estado argentino e grupos indígenas no pré-expansão territorial”, analisa osesforços engendrados pelo Estado argentino, ao longo do séculoxix, para consolidar sua jurisdição sobre determinadas porções18

APRESENTAÇÃOterritoriais como o Chaco, os Pampas e a Patagônia, que pertenceram ao vice-reinado do Rio da Prata e que permaneceram geograficamente marginalizados durante séculos.No século xix, essas espacialidades consistiam em zonas desoberania incerta e meramente formal e eram almejadas por comunidades políticas que se consolidavam a partir da construçãode sua própria territorialidade. Além disso, constituíam espaçosfronteiriços, submersos em uma realidade permeável, difusa e dinâmica. Caracterizavam-se pela circulação de ideias, pessoas, objetos, recursos e tecnologias; eram definidas e atravessadas pormúltiplas relações interétnicas – entre grupos indígenas e entreeles e os grupos hispanocriollos – e sujeitavam-se a lógicas de negociação, alianças, intercâmbios e conflitos. A autora destaca aindaa fundamental relação dessas espacialidades com a ideia do deserto e de vazio. O trabalho mostra como a recuperação da unidadeterritorial existente no período colonial supunha o enfrentamentode obstáculos, fossem eles as disputas limítrofes com outras jovensRepúblicas hispano-americanas ou o conflito com grupos indígenas “araucanizados”. Neste sentido, ela analisa os discursos políticos proferidos pela intelectualidade criolla, principalmente pormeio da imprensa, tanto no meio civil quanto militar, para justificar e impulsionar o processo de expansão territorial vivido peloEstado argentino neste período. Ao mesmo tempo, busca analisaras redes de intercâmbio mantidas entre as principais chefaturasindígenas (longkos) e as autoridades criollas, demonstrando que osnativos também foram capazes de organizar formas de resistênciaao avanço promovido pelo Estado nacional sobre suas terras.Ivia Minelli, em seu artigo “¿El gaucho está muerto? Os embates da intelectualidade argentina no contexto do Centenário deIndependência”, propõe-se a mapear alguns dos diferentes interesses intelectuais que ocuparam a cena literária e periodista na época do Centenário de Independência da Argentina, estruturandoalguns debates desenvolvidos nesse momento em relação à letranacional. Neste caminho, depara-se com questões sobre a narrativa do nacional e com as mais diversas disputas que essa linguagem19

MARIA ELISA NORONHA DE SÁdespertou entre os intelectuais do período. Demonstra que esseembate em torno das comemorações do Centenário, por um lado,desenha as articulações de diferentes propostas literárias frenteaos impasses da modernidade; por outro, define o parâmetro elitista desse contexto. Com o objetivo de ampliar as vozes críticas edissonantes, a autora faz referência tanto a famosos intelectuaisquanto a periodistas e payadores condenados a uma simples recordação folclórica na posterior consolidação do cânone literário argentino. Neste sentido, destaca a recorrente figura do gaucho comotema central da questão sobre a identidade nacional na literaturacriollista, embora ela estivesse anunciada nesse período sob distintas perspectivas: o gaucho era declarado morto para os que já nãopodiam evitar os encantos do homem moderno; era reverenciadopelos defensores da tradição nacional frente aos entraves da modernidade; era decretado arquétipo do glorioso passado argentinopelos que buscavam colocar a história e a linguagem nacionaisnuma linha evolutiva e, portanto, universal. O trabalho contribui,assim, para mostrar como os anos 1910 podem revelar uma significativa heterogeneidade intelectual ao se propor a conectar essesdiferente

história intelectual latino-americana e desenvolvem estudos nesse campo para debater as pesquisas em andamento. Além do trabalho conjunto entre diferentes instituições de ensino e distintos pro - gramas de pós-graduação, esta foi uma oportunidade para discu-tirmos, no interior do Programa de Pós-Graduação em História