Lugar Das Humanidades Na Ideia De Universidade Crítica1

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Lugar das Humanidades na ideia de Universidade crítica1Paulo Denisar Fraga2I. Hipótese norteadora e modo de exposiçãoIniciemos por esclarecer sobre como pensamos poder tratar do tema desta mesa, “Aresponsabilidade da Universidade na formação do sujeito crítico”.Parece óbvio que se deva responder com um sim à ideia de que a Universidade temuma responsabilidade, inclusive especial, na formação do sujeito crítico. Embora sejanecessário dizer que tal propriedade não é uma exclusividade da Universidade. No mundotodo, foram os movimentos sociais progressistas que cumpriram grandemente essa função.Afinal, depois de Weber, Adorno e Foucault, não podemos mais ignorar o entrelaçamentoentre o conhecimento e a dominação. E, ao dizermos isso, deixamos implícito que nãodevemos nos bastar a um conceito meramente técnico de senso crítico.Isto posto, perguntemo-nos: seria a tarefa da formação do sujeito crítico naUniversidade apenas uma obra de novos métodos e didáticas de ensino, ou um fazermeramente individual, ou mesmo de um certo coletivo de professores dados comometodológica e/ou conteudisticamente excelentes?Pensamos que não! Reservado o respeito aos que se dedicam, com honestointeresse, ao estudo dos meios de viabilidade 1Painel apresentado na mesa redonda “A responsabilidade da universidade na formação do sujeito crítico”,durante o VII Seminário sobre Leitura e Produção no Ensino Superior, realizado na Unifal-MG em setembro de2010.2Professor do Instituto de Ciências Humanas e Letras da Unifal-MG.177

dessa questão nas disciplinas internas às várias áreas, nossa hipótese percorre perspectivadistinta, qual seja, a de que a efetivação de tal responsabilidade depende primeiramente daprópria concepção de Universidade que tivermos. E mais, do papel que no interior delapossam cumprir as Humanidades, retomando essa questão mais ou menos sob a influênciado que Wilhelm von Humboldt levantou no seu tempo, no projeto de criação daUniversidade de Berlim3.Justificamos esse corte analítico pelo intuito de uma visão dialética e mais universal,bem representada numa passagem do livro de Marilena Chauí, Escritos sobre a universidade:devemos “tomar a questão do ensino não como técnica de transmissão de conhecimentos ede consumo passivo dos saberes, mas como parte constitutiva da aparição de sujeitos doconhecimento, de tal modo que o ensino e a instituição universitários sejamsimultaneamente agentes e produtos da ação de conhecimento que engendra esse sujeito”(2001, p. 171).Mas que lugar teriam ainda as Humanidades depois que Marcuse afirmou, já há maisde 40 anos, que a Ciência e a Técnica foram alçadas à condição de uma ideologiamascaradora da dominação?Ou, mais presentemente, estaríamos numa era pós-industrial, em que também opapel interdisciplinar das Humanidades estaria perdido, como uma iguaria ingênua e inútilfrente à fragmentação do mundo do trabalho e da cultura, ou frente àquilo que FredricJameson chamou de Pós-modernismo, lógica cultural do capitalismo tardio?3A título de nota, registramos que não ignoramos a análise de Habermas sobre os limites das ideiashumboldtianas em sua conferência de 1987, intitulada “A ideia de universidade: processos de aprendizagem”.Mas anotamos, a propósito da dificuldade de um projeto atual de universidade, que o próprio Habermas odeixa em aberto no final do seu texto, recuando inclusive de uma aplicação mais modelar de sua própria teoriada ação comunicativa à universidade. Por outro lado, consideramos válido o recurso ao potencial críticocontido na proposta humboldtiana, ao qual, inclusive, fez referência positiva Alex Demirovic, em suarecentíssima conferência no Brasil sobre “O que significa falar da atualidade da Teoria Crítica?”.178

Vamos iniciar a resposta a essas questões de um modo não-sistemático, talvez meiobenjaminiano, recorrendo a algumas imagens ou passagens tópicas que possam ilustrar comcerta potência tanto a necessidade como a viabilidade da mediação reflexiva entre asCiências Empíricas e as Humanidades, escovando, assim, a contrapelo das tendências acima,tal como Walter Benjamin recomendou ao materialismo crítico.II. Passagens sobre Ciência e reflexão humanística1. Considerando a observação de Sérgio Paulo Rouanet, em As razões do iluminismo,de que o setor industrial pode ter diminuído, mas que o complexo do sistema industrial seampliou enormemente, podemos dar como legítima a lembrança de um texto de FranklinLeopoldo e Silva, intitulado “O papel das Humanidades no contexto tecnológico”.Nesse texto, o autor se pergunta por que a crise da Universidade e do seu ensinopode ser vista, em grande medida, como perda da centralidade das Humanidades noprocesso da produção do conhecimento acadêmico?Ao discuti-lo, observa que, geralmente, as Humanidades aparecem ao senso maisgeral como algo de “arcaico”, ao passo que a Ciência insinua-se como algo “moderno”. Masantes de criticar tal classificação, o autor procura compreendê-la como expressãorazoavelmente natural decorrente dos modos de proceder na produção do conhecimentoentre as Ciências mais técnicas e as Humanidades. Por exemplo, para desenvolver um novosoftware, o pesquisador não precisa recorrer a toda a história da informação eletrônica.Basta-lhe o conhecimento do software mais avançado que existe, para dali seguir adiante. Jápara o tratamento fundamentado de temas como a liberdade ou a política, o pesquisadorprecisa recorrer aos clássicos, muitas vezes até aos gregos, que estão no começo dopensamento ocidental.179

Leopoldo e Silva atribui a supremacia paradigmática da Ciência e da técnica nosparâmetros da produção do saber ao papel civilizatório desempenhado historicamente pelodesenvolvimento científico desde a Renascença. Por outro lado, argumenta que aprogressiva centralidade da tecnologia científica promoveu a perda da unidade reflexiva einterdisciplinar do saber e, portanto, o comprometimento da própria ideia da Universidadeenquanto unidade da multiplicidade. Frente a isso, afirma que, se não é mais possível umauniversalidade do saber como a que havia antes do Renascimento – ou nos tempos em quePitágoras respondia que era um amigo da sabedoria (philos-sophos), para com issorepresentar a unidade de todo o conhecimento, o que a Filosofia expressou por séculos –, épreciso, em contrapartida, que as Humanidades retomem o seu lugar articulador do saberfragmentado para que a Universidade possa sustentar a sua própria razão de ser. E concluique as Humanidades precisam se livrar de sua má-consciência do “arcaico” e assumir o quede autêntico existe nessa característica, pois o contato com a origem, com a totalidadeperdida, é a condição para haver consciência histórica nas próprias Ciências, e representa aúnica possibilidade atual de uma universalidade crítico-reflexiva do conhecimento naUniversidade.2. Corrobora, neste sentido, a ilustração de Gaston Bachelard, em A poética doespaço, que se refere à metáfora da casa, do porão e do sótão, que o filósofo, matemático efísico teórico Gérard Fourez, em seu livro A construção das ciências, compara com oapartamento, segundo uma entrevista de Bachelard.A leitura que Fourez faz dessa imagem é excelente. Contudo, vamos nos apropriardela num sentido bastante livre aqui, relacionando-a a outras expressões igualmente muitosignificativas. A grosso modo, resumindo poderíamos considerar que o apartamento significaviver em um único plano, com uma única visada das coisas do mundo. Já a casa, o porão e osótão permitem olhares múltiplos, a partir de planos diversos.180

O sótão permite olhar as coisas de um outro ângulo, mais filosófico, poético, ouprojetivo, para fora. De certo modo, aqui, poderíamos lembrar de uma cena altamenterepresentativa do filme Sociedade dos poetas mortos, quando o professor, disposto aincentivar o senso crítico dos alunos numa escola de disciplina extremamente conservadorae autoritária, solicita a eles que subam em sua classe e olhem para o fundo da aula. Osalunos inicialmente receiam, temendo alguma punição. Já o porão permite o olhar emprofundidade, mais introspectivo, dos fundamentos psicológicos ou sociais que condicionamas coisas, o que também é importante para o pensamento reflexivo. De certa forma, a figurado porão faz lembrar a fórmula de Humboldt, “solidão e liberdade”, que, como explicaVolker Gerhardt, não significava necessariamente isolamento, mas autonomia do indivíduopara se retirar à sua interioridade como condição para a observação precisa e o juízo sóbrio.Contudo, Bachelard observa que o problema reside em que muitas pessoas nuncavão ao sótão ou ao porão, vivendo num único plano, como num apartamento, sem a chancede ver as coisas de um ponto de vista novo e diferente. Fourez, por sua vez, lê o significadoda metáfora bachelardiana associando-a às noções de “código restrito” e “códigoelaborado”, que retoma do sociólogo inglês Basil Bernstein. Na aplicação conceitual deFourez, o código restrito é o código técnico da Ciência, assim como para Bernstein era o dalinguagem ordinária, com fins práticos e partindo das mesmas pressuposições de base. Já ocódigo elaborado é, para Fourez, o código reflexivo das Humanidades, partindo depressuposições de base diferentes. O primeiro se preocupa em descrever o “como” dascoisas; o segundo visa o seu “sentido” ou o seu “porquê”.Por isso, diz Fourez, num universo de aproximação dialógica entre os dois códigos, “anoção que se tem da Ciência será ligada, graças a uma linguagem elaborada, a outrosconceitos, tais como a felicidade dos humanos, o progresso, a verdade, etc. Essa linguagemelaborada – essa Filosofia da Ciência – permitirá uma interpretação daquilo que a linguagemrestrita diz a respeito da181

Ciência”. Com isso o autor visa superar a ideia de que, “uma vez que se falou decientificidade, não há nada mais a fazer senão se submeter a ela, sem dizer ou pensar maisnada a respeito” (1995, p. 21). Fica claro, portanto, o papel das Humanidades naautoreflexão científica, fazendo lembrar da afirmação de Merleau-Ponty de que apropriedade essencial da “verdadeira Filosofia é reaprender a ver o mundo”.3. De fato, Aristóteles, na primeira frase de um dos livros mais importantes dahistória da humanidade, a Metafísica, escreveu que “todos os homens desejamnaturalmente saber”. Mas a questão está em se a busca do conhecimento é algo preso acadeias que impõem uma limitação objetivista na Ciência, ou se é algo aberto à condiçãocrítica e autocrítica.Isso nos faz lembrar que após a época determinista dos mitos, na qual a subjetividadehumana não desempenhava papel algum por não haver espaço para o livre arbítrio, osprimeiros filósofos, conhecidos como pensadores cosmológicos, ainda completamenteimpressionados pelo imenso poder da natureza frente à debilidade da ação humana,buscaram explicar as coisas gerais do mundo pelo ordenamento da natureza. Foi o períodono qual teve lugar a famosa afirmação de Tales de Mileto de que “tudo é água”, e a teoriados quatro elementos de Empédocles, para a qual o universo é formado por água, fogo,terra e ar.Nessa tentativa de decifrar a arché ou o princípio ordenador do cosmos, destacaramse, ainda, os filósofos atomistas, especialmente Demócrito, que defendeu a muitosignificativa e duradoura tese de que o átomo é o elemento último da matéria, indivisível eincorruptível.Em sua tese de doutorado defendida na Universidade de Iena em 1841, intituladaDiferença das filosofias da natureza em Demócrito e Epicuro, Karl Marx tratou do atomismogrego. E é muito interessante compreendermos por que ele preferiu defender a Epicurofrente a Demócrito, que era reconhecido como um dos fundadores do atomismo grego.182

Simplificando bastante o assunto da tese, que é muito mais complexo do que o pontoque destacaremos aqui, a questão residiu em que Marx notou que em Demócrito os átomoscaem em linha reta no vazio, repelindo-se por entrechoques, segundo uma lei semprenecessária, numa lógica restritiva que termina por afirmar o determinismo natural, ao passoque em Epicuro, seguindo Lucrécio, Marx destacou a teoria do clinamen, ou seja, de que osátomos caem também em diagonal, desviando-se espontaneamente da linha reta, abrindoespaço para o acaso e novas formas. E Marx entendeu que essa ideia, no plano da Física,abria o caminho para a liberdade, uma vez que ela favorecia, de modo equivalente, no planomoral, a autodeterminação da consciência frente aos ditames e apetites da natureza.Ademais, Epicuro excluía qualquer interferência divina sobre o movimento dos átomos,porque ele prezava o ideal da ataraxia, que significava que os deuses não devem perturbar atranquilidade da autoconsciência humana.Independente da origem da teoria da declinação dos átomos4, importa notar que asobjeções do jovem Marx à Física de Demócrito em favor da de Epicuro revelavam, já sobre aCiência ou Filosofia da Natureza dos antigos, que não pode haver sujeito crítico se oprocesso do conhecimento não permitir abertura para que a ação reflexiva da subjetividadehumana possa desabrochar.4Existe todo um debate sobre se Epicuro elaborou ou não uma teoria do clinamen, cuja menção não aparecenos seus escritos diretos e que alguns autores creditam a uma atribuição de Lucrécio, seu principal discípulo. Apropósito, podem-se ler, no Brasil, os textos de João Quartim de Moraes: “Clinamen: o milenar prestígio de umfalso problema” (2001) e “O desvio e o encontro no materialismo antigo” (2007). Contudo, aqui interessaapenas registrar o significado efetivo que essa teoria teve em Marx para a defesa da subjetividade humanacontra um atomismo que lhe parecia ainda legitimar o determinismo mítico, contrabandeando-o para dentroda Filosofia. E se a liberdade ética não depende de uma liberdade no terreno da natureza, o que seria umaderivação mecânica e heterônoma, nem por isso a valorização de tal relação é desprezível, especialmente paraos atomistas, que consideravam dever explicar a lógica do mundo pela da matéria natural. Em tal contexto,tratava-se de um avanço.183

4. Um exemplo emblemático da necessidade de uma Ciência com consciência nãomais na palavra de um filósofo, mas na figura de um físico, é o que integra a biografia deAlbert Einstein, o nome contemporâneo mais popular da história da Ciência.Para entendermos do que se trata, convém fazermos um questionamento: se aCiência se basta por si própria, por que Einstein, o maior cientista do século XX, se dedicoucada vez mais a assuntos polêmicos, situados mais no universo das Ciências Humanas do queno estrito da produção científica pura? Dentre outros, podemos lembrar, por exemplo, doseu livro Como vejo o mundo, dos seus textos em defesa da paz e mesmo do seu artigo emfavor do socialismo.Já antes da II Guerra, convidado para uma conferência em 1932, e para tentarcompreender tal irracionalidade humana, Einstein escreveu a Freud, o fundador daPsicanálise, para saber dele, que era versado nos assuntos da “alma”, ou da psique humana,por que os homens fazem a guerra e de como poderiam se ver livres dela.A resposta de Freud é extensa, numa parte pessimista e noutra otimista frente àspossibilidades dos instintos ou pulsões humanos. Contudo, o sentido mais de fundo de suacarta deixa também uma questão a Einstein que, como observou Jurandir Freire Costa noseu livro Violência e psicanálise, sugere que talvez seria mais fácil, para se encontrar umaresposta promissora, que ao invés de se perguntar por que os homens fazem a guerra, seperguntasse por que eles deveriam desejar a paz.Nisto, talvez possamos nos referir a algo que descreveremos como a “tragédia deEinstein”. Como visto, há mais de dois mil anos os gregos haviam determinado que o átomoera uno, indivisível e incorruptível. Contudo, com a descoberta da fissão nuclear (método deliberação de energia atômica) na Alemanha durante a II Guerra, confirmando a famosafórmula de Einstein (E mc²), que contradizia a indivisibilidade do átomo por afirmar que aenergia de um corpo não é fixa isoladamente, mas variável e expansiva conforme o produtode sua massa vezes184

a velocidade da luz no vácuo5, ele temeu severamente pela fabricação de armas atômicaspelos nazistas e concordou com colegas seus em assinar uma carta ao presidente norteamericano, Franklin Roosevelt6, apoiando a aceleração de pesquisas nucleares com finsarmamentistas, o que incentivou o desenvolvimento do Projeto Manhattan, no qual os EUAproduziram a bomba atômica. Com o horror da destruição vista em Hiroshima e Nagasaki,Einstein arrependeu-se profundamente e passou a considerar esta a decisão maisequivocada de toda a sua vida. Isso o fez intensificar a sua atividade pacifista, muito emborasuas outras iniciativas nesse sentido não tenham tido o mesmo efeito, pois se tornouimpossível frear a corrida nuclear bélica. Ainda uma semana antes de sua morte, Einsteinlutava contra isso, autorizando o filósofo Bertrand Russel a incluir o seu nome numManifesto pela paz.Essa questão um tanto dramática encerra uma lição muito importante para oaprendizado e a pesquisa em matéria de Ciência, qual seja, a de que o cientista pode ser,sim, o dono da sua descoberta, patenteá-la, receber fama e royalties por ela (e, nalinguagem dominante de hoje, até colocar no Lattes7.). Porém, a questão decisiva estánaquilo que Einstein percebeu em sua própria experiência: que por mais notável, bemintencionado e5Ou seja, Einstein amplia e requalifica as leis da conservação da massa e da energia, segundo as quais massa eenergia são dois princípios permanentes, porém agora não mais como elementos isolados, mas conversíveis ecompensáveis entre si, de modo que no caso da divisão do núcleo do átomo a perda de massa se converte emenergia multiplicada pela velocidade da luz ao quadrado, razão do seu gigantesco grau explosivo.6Ver Einstein; Roosevelt, 2010.7Por falar nisso, embora não seja o foco deste ponto, nem desta exposição, vale lembrar o Especial daCentésima Edição da Revista Espaço Acadêmico (2009), periódico eletrônico da Universidade Estadual deMaringá, que traz o Dossiê “Universidade em ritmo de mercado”. Fazemos essa menção porque seguramentetal produtivismo instrumental se insere numa direção desfavorável ao desenvolvimento do sujeito crítico naUniversidade.185

influente que seja o cientista, ele não é dono nem controla o uso que se faz de suaspesquisas e descobertas. Sequer pode prevê-lo completamente. Afinal, isso não é decididode forma “pura” nos laboratórios, mas sob a pesada influência do universo das relaçõespolíticas e econômicas. E é por isso que a Ciência precisa ser pensada também socialmente,e por pessoas que excedam o universo restrito dos técnicos e cientistas stricto sensu. Porquesó assim a sociedade – e os próprios cientistas – poderão ter algum controle sobre o uso quese faz dela.5. Um outro exemplo, ainda mais próximo de nós, em torno de uma subárea doconhecimento surgida na década de 1970, e também não propriamente do mundo filosófico,mas interna às Ciências Naturais, mais especificamente à Biologia, é o da Bioética. Ou seja, aBiologia que, após os impressionantes avanços da Genética, se candidata seriamente como aCiência mais promissora do século XXI, chega à conclusão de que a análise empírica da vida,a dimensão do bios, precisa ser cotejada pela reflexão sobre os seus limites e finalidadesmorais, ou pela dimensão filosófica do ethos.O fazer científico mais lúcido e autocrítico reabre-se para pensar a relação da Ciênciacom o Outro, seja esse Outro a natureza, seja o Outro a humanidade. Justamente esseOutro, que muitas vezes foi politicamente ignorado ou mesmo psicologicamente negado,mas ao qual a Psicanálise se refere como aquele suposto “estrangeiro” que, como oAbsoluto de Hegel, está sempre junto a nos desafiar constantemente de um modo ou deoutro.Com efeito, Marx e Adorno advertiram a Modernidade de que a natureza é o corpoinorgânico do homem, o corpo não-contínuo, mas a outra metade do complexo do sersocial-natural, que não pode ser eliminada sem que ela reaja sob a figura freudiana doretorno do recalcado, isto é, sob a forma de catástrofe ou violência. Embora por outroscaminhos, é para o que Hans Jonas chamou a atenção em seu livro O princípioresponsabilidade, deixando claro que a crise ambiental da civilização tecno-científica étambém uma crise ética, na qual o homem deve se cuidar dos186

descaminhos do seu poder, para preservar não só o futuro do mundo, como também o seupróprio ser enquanto humano. Muito embora, devamos ressaltar a advertência que vem dateoria de Marx, segundo a qual a desconsideração do homem pela natureza não nasce deum problema primeira e exclusivamente moral, mas da alienação ou estranhamento naesfera do trabalho, onde o homem não se reconhece no que produz. À medida que otrabalho se torna sofrimento, e não realização humana, é evidente que a relação do homemcom a natureza, que se dá primordialmente pelo trabalho, se torna também uma relaçãoinstrumental e não de reconhecimento e completude integradora.No que respeita mais imediatamente ao Outro da humanidade, inclui-se também acrise ética da Universidade. Sobre isso, Marilena Chauí adverte que não se deve compactuarnem com o elitismo teoricista indiferente aos temas ditos menores e mais candentes da vidareal, nem com a acriticidade de um praticismo irrefletido que transforma a Universidade emmera prestadora de serviços à comunidade, ou ao mercado, consagrando o que Francisco deOliveira chamou de “universidade de resultados”. Ou seja, aquilo de que falou Jonas, o“princípio responsabilidade”, se aplica inteiramente à Universidade, que não pode fugir dasua sem comprometer o seu próprio conceito e sua justificativa histórica no mundo dosaber.O conjunto dessas passagens é o bastante para ilustrar que existem várias iniciativasque demonstram que não só é necessária, como é desejável e possível uma relação reflexivaentre as Humanidades e as Ciências Empíricas, de modo que possam representar umamediação crítica produtiva no processo universal do conhecimento, numa dialética relaçãode respeito entre si, e de si com a cultura, com a natureza e com a sociedade que as constituie sustenta. São caminhos de acionamento e abertura para a formação de uma subjetividadecrítica no interior da produção do conhecimento acadêmico e científico.187

III. A relação entre Ciências e Humanidades no conceito histórico deUniversidade modernaNesta parte, que trataremos mais brevemente, intencionamos sublinhar doiselementos do modelo humboldtiano de Universidade moderna: a unidade entre pesquisa eensino e a articulação entre ensino, Ciência e Filosofia.Wilhelm von Humboldt (1767-1835) era filósofo, linguista e diplomata, Ministro daEducação da então Prússia em 1809, quando escreveu o Memorando “Sobre a organizaçãointerna e externa dos Estabelecimentos Científicos Superiores em Berlim”, documento quenorteou a origem da Universidade de Berlim, que no futuro receberia, em homenagem aoseu criador, o nome de Humboldt-Universität zu Berlin.A concepção de Humboldt resultava, fundamentalmente, da influência histórica ecultural do Iluminismo, da política do liberalismo e da filosófica do idealismo alemão, sendoque suas ideias se nutriam da convivência com os grandes filósofos Hegel, Fichte, Schelling eSchleiermacher, além do linguista Christian Wolf e do jurista Karl von Savigny, e também doseu irmão mais novo, Alexander von Humboldt, que se dedicou às Ciências Naturais.1. Para entender o valor e a originalidade da visão de Humboldt, e por que ela éreconhecida como o modelo por excelência de Universidade moderna, é necessário ter emmente, ainda que sumariamente, que naquele momento a Universidade vivia a maior crisede toda a sua história, pois a Igreja Católica, reagindo às novas teses nominalistas no terrenofilosófico, às ideias protestantes no terreno religioso e à revolução galilaico-copernicana naAstronomia, acirrou o controle sobre as universidades, confinando-as ao ensino da doutrinaescolástica católica, e excluindo de sua estrutura a investigação mais propriamentecientífica, que foi marginalizada para ser feita externamente, nas Academias.Consequência disso, por ver a Universidade como um resquício medievalantimoderno, na França revolucionária Napoleão188

decretou o fechamento das universidades. E essa mesma discussão ocorria também naAlemanha, previamente à criação da Universidade de Berlim. Dialeticamente, do ponto devista do espírito crítico, importa ver o aspecto positivo de que nessa crise já estava posta aideia de que o ensino puro e simples, sem o concurso enriquecedor de condições para aliberdade de pesquisa, tornara-se coisa enfadonha aos olhos dos intelectuais e irrelevantepara uma sociedade que emergia dos novos avanços industriais e do universo culturalemancipatório do Iluminismo.2. O primeiro elemento a destacar, mais original e produtivo, que vai render umverdadeiro renascimento e revalorização à Universidade, instituição à época inteiramentedesacreditada, foi, como observou Lorenz Puntel, da Universidade de Munique, o de “umprofundo reposicionamento do conceito e da realidade da Ciência: na perspectivahumboldtiana a Ciência foi libertada das tradições científicas enciclopédicas e, ao invés, foiconcebida e planejada na perspectiva da pesquisa (Forschung)” (2002, p. 210).Nisto, diz Humboldt em seu Memorando: “na organização interna dosEstabelecimentos de Ensino Superior tudo repousa sobre a manutenção do princípio de quea Ciência há de ser considerada como algo ainda não de todo encontrado, e que nunca podesê-lo, devendo ser buscada ininterruptamente como tal” (2008, p. 183).Conceitualmente, Humboldt propõe a unidade indissociável entre ensino e pesquisa,a superação da concepção de ensino baseada na relação de transmissão de saberes entremestre e discípulo, para tornar, assim, os alunos sujeitos ativos no processo do seu próprioaprendizado, vicejando, com isso, na dimensão da estrutura organizacional, a rearticulaçãoentre a instituição Universidade e as Academias de ciências. A Modernidade superava,assim, a cisão entre a Universidade reduzida a um ensino doutrinal puramente escolástico,de um lado, e, de outro, as Academias, promotoras da pesquisa em Ciências à margem daUniversidade.A aproximação entre Universidade e Academia passa, então, a encerrar princípiossobre a cooperação entre a Universidade189

e instituições externas a ela. Isso sinalizava, como frisou Volker Gerhardt, professor daUniversidade de Berlim, a importantíssimo entendimento de que, “aos olhos de Humboldt, éum fato histórico que as universidades que se retraem em si mesmas podem, por um lado,esbaldar-se em tradições, mas perdem toda e qualquer significância para o presente e ofuturo” (2002, p. 22).Com a Universidade pensada em torno da pesquisa científica, a concepção deHumboldt ficou conhecida como indissociabilidade entre pesquisa e ensino. E, de fato, suavisão constituía uma concepção realmente original. Tanto que mesmo o livro The idea of auniversity, do cardeal inglês John Henry Newman, que muitos consideram a maior obraescrita sobre a Universidade, permanece ainda dentro dos limites da oposição entre ensinouniversitário e pesquisa acadêmica. De fato, só uma concepção predominantemente laica,iluminista, poderia refundar a ideia de Universidade liberando-a de sua visão e estruturaanacrônicas para os desenvolvimentos modernos.3. O segundo elemento a observar foi a articulação que, em meio à concepçãodescrita, brotou entre ensino, Ciência e reflexão filosófica, onde a unidade da Ciência eraconcebida como devendo ser assegurada pela Filosofia. Neste sentido, é interessante notarque um ano antes do Memorando de Humboldt, Hegel publicava o seu famoso livrointitulado Fenomenologia do espírito. Nele desenvolvia a tese de que a Ciência deveria serconcebida como sistema, criticando a fragmentação dos saberes do particular como um“conglomerado de conhecimentos que levam o nome de Ciência sem o merecer” (1992, p.21). Hegel considerava que por ser capaz de tratar as coisas de modo universal erelacionante, a Filosofia inscrevia-se como o único saber digno do nome de Ciência. Era umponto de vista rico, que antecipava uma crítica à fragmentação positivista do saber antesdela ser formulada, mas hoje uma ideia de difícil assimilação, dadas as acomodaçõesestereotipadas do saber.Conforme assinalam Rüdiger vom Bruch e Lorenz Puntel, na sistemática deHumboldt, a Universidade articula a conexão entre190

a perspectiva do conceito de formação (Bildung), enquanto educação geral humanística,com a orientação presente na noção de Ausbildung, que descreve a educação mais técnica eespecializada.Ao comentar as ideias que confluíram para a tecitura do projeto berlinense, JürgenHabermas observa que tais “reformadores atribuíam à Filosofia uma força unificadora comreferência a três aspectos a que hoje chamaríamos tradição cultural, socialização eintegração social. A ciência filosófica fundamental era, em primeiro lugar, de baseenciclopédica e estava por isso em condições de assegurar a unidade na diversidade dasdisciplinas científicas, bem como a unidade da Ciência com a arte e a crítica, por um lado, e oDireito e a moral, por outro lado. A Filosofia apresentava-se como a forma de reflexão dacultura no seu todo” (1993, p. 116).Ou, mais sinteticamente, como Habermas resumiu, a Universidade de Berlimfundava-se na interrelação dinâmica do seguinte complexo de “unidades”: “unidade deinvestigação e ensino, unidade de ciência e cultura geral, unidade de ciência eesclarecimento crítico (Aufklärung) e unidade das ciências” entre si (Ibid., p. 127).Assim, a concepção humboldtiana, que se tornou paradigma da ideia de Universidademoderna, visa o desenvolvimento do espírito crítico individual através da Ciência. Ela priorizaa pesquisa e defende a Ciência. Mas ela alça a fundamentação da Ciência como fim em simesmo ao nível de um viés crítico neohumanístico no qual o afazer científico aparece comorequalificação do espírito humano como um todo. E não apenas como um saberespecializado positivo.Por fim, é importante ressalt

software, o pesquisador não precisa recorrer a toda a história da informação eletrônica. Basta-lhe o conhecimento do software mais avançado que existe, para dali seguir adiante. Já para o tratamento fundamentado de temas como a liberdade ou a política, o pesquisador precisa recorrer aos clássicos, muitas vezes até aos gregos, que .