Os Yogasutras 3.0 - Yoga, Acupuntura, Tui-Ná

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paataÕala ya{gasaU«aaiNaOs Yogasutras de PatañjaliTraduzidos do sânscrito e comentadospor Carlos Eduardo G. BarbosaPrimeira EdiçãoSão Paulo, Abril de 1999

2paataÕala ya{gasaU«aaiNaCopyright 1998 - Carlos Eduardo Gonzales BarbosaTítulo do original:paataÕala ya{gasaU«aaiNaPátazjala Yogasútráñi(Os Yogasutras de Patañjali)ISBN 85-900925-1-8Editado pelo AutorPrimeira Edição(última revisão - maio 2006)Mais informações podem ser obtidaspelo e-mail:carlos.eduardo@mais.com

Os Yogasutras de PatañjalipaataÕala ya{gasaU«aaiNaOs Yogasutras de PatañjaliTexto clássico fundamental do Sistema Filosófico do YogaVersão IntegralEm Sânscrito e em PortuguêsTraduzidos do sânscrito e comentadospor Carlos Eduardo G. BarbosaInstrutor no Curso de Formaçãode Professores de Yogado Instituto Narayana.Primeira EdiçãoSão Paulo, Abril de 19993

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Os Yogasutras de Patañjali5SumárioPrefácio7Introdução11A Tradução dos Sutras do Yoga17O Plano da Obra21Quem foi Patañjali?33Os Sutras e a Inteligência Corporal35O Texto:Capítulo I - Samadhi43Capítulo II - Sadhana55Capítulo III - Vibhuti69Capítulo IV - Kaivalyam83Apêndices:Apêndice A - A Língua e a Literatura Sânscritas93Apêndice B - Samkhya e Yoga99Apêndice C - Asmita - a questão da “Egoidade”101Bibliografia103Agradecimentos105

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Os Yogasutras de Patañjali7PrefácioAlguma coisa pode ser consideradacomo uma preciosidade em função das circunstânciasou do momento no qual ela está inserida.Para um ourives, uma pedra preciosa, bemformada, sem impurezas e de lapidação perfeita é deuma preciosidade inigualável para seus fins e propósitos.Entretanto, para um enfermo num leito dehospital, um litro de sangue tem um valor e importância inestimáveis.E o que dizer da água para um caminhantesedento no deserto?Por outro lado, qual seria o valor de um litrode sangue para um ourives, de um copo de água paraum enfermo e de uma jóia para um sedento caminhanteno deserto?Os Sutras de Patanjali são mais do que umapreciosidade. Eles são um legado à humanidade quese perpetua no tempo, pois contêm uma sabedoriaúnica e imprescindível à verdadeira transformação erealização do ser humano, com relação a sua naturezasuperior. Sem este saber a existência humana se reduz à sobrevivência e realização mundana.

8paataÕala ya{gasaU«aaiNaO que torna o presente livro uma preciosidade, além do seu conteúdo, é a tradução e a objetividade dos comentários do amigo Carlos EduardoGonzales Barbosa. Conhecedor de fato do Sânscrito,a língua original na qual foram escritos os Sutrasde Patanjali, e professor de Cultura da Índia parainstrutores de Yoga há vários anos, ele apresenta asabedoria dos Sutras tal como ela foi escrita, semincorrer no erro de tantas outras versões que fizeram traduções em cima de traduções. Também nãose alonga desnecessariamente em comentários que,via de regra, afastam o leitor da seqüência de idéiasconcatenadas que os Sutras apresentam e do verdadeiro espírito da obra original.Esta clareza na tradução e objetividade decomentários favorece um rápido envolvimento como conteúdo do texto, além de simplificar o entendimento dos ensinamentos contidos na obra. Com issoo leitor sente-se familiarizado com a cultura doYoga e, portanto, encorajado à sua prática, contrariando deste modo certas idéias correntes de que osensinamentos do Yoga são de difícil compreensão ede impossível realização.Assim, ao chegar em nossas mãos esta versão diferenciada, é pertinente nos questionarmossobre certos cuidados no nosso relacionamento como seu conteúdo.Muitas vezes, ao entrarmos em contatocom uma cultura diferente da nossa, caímos no errode reduzirmos a outra cultura aos nossos própriospadrões de interpretação. Isso pode ter conseqüências desastrosas, tratando-se dos Sutras dePatanjali, não só por causa das sutilezas do assunto mas, também, porque eles foram escritos por umIluminado, por um ser que apresentou as verdadesa partir de um nível não ordinário de entendimento.

Os Yogasutras de Patañjali9Esta situação pode ser elucidada com a história do Rei Midas, que transformava em ouro tudo oque tocava, inclusive a comida necessária a sua sobrevivência. Ele estava tão obcecado com seu propósitode transformar tudo em ouro, isto é, transformar tudoaos seus próprios valores e interesses, que perdia devista o valor intrínseco de cada coisa.A cultura ocidental e a oriental são complementares, desde que se tenha uma clara visão de ambas.Conseqüentemente, ao querer interpretar os Sutrasde Patanjali sem estar atento aos nuances da culturaoriental, pode-se cair no erro do Rei Midas, ou seja, ode perder o valor intrínseco de cada aforismo.Este cuidado é indispensável ao interagirmoscom este conhecimento. Desta forma, a leitura destelivro proporcionará as bases para uma transformaçãode vida e não meramente um conhecimento intelectual do assunto.Para aqueles que querem ir além do rotineirocotidiano, a leitura e estudo dos Sutras de Patanjalilevam ao entendimento claro e objetivo sobre a natureza metafísica do ser humano, sobre o sentido da experiência terrena e sobre os caminhos para a libertação, enquanto indivíduos encarnados.Nossa sugestão é: leia e comprove.Dezembro de 1998Fernando José GramacciniMembro da Sociedade Teosófica

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Os Yogasutras de Patañjali11IntroduçãoA ilustração acima, quepontua os textos destaedição, representa ÇivaNataraja, o deus dosmímicos e dos dançarinos,patrono das artes profanas edas artes ocultas na Índia.É também o inspiradorprimitivo do sistema doYoga.A Índia é um país exótico e misterioso aosolhos dos milhares de viajantes ocidentais quetêm percorrido suas terras e sua Cultura. Comsua mística e sua sabedoria profunda, quedesafiam os milênios, desenvolveu artes eciências que a muito custo conseguimosigualar e raramente ultrapassar, e guardasegredos que segundo a tradição só serãorevelados em séculos vindouros para as naçõesque ostentarem os méritos exigidos para talrecompensa.Para os “Pandits”, os eruditos da Índia,seu país tem um destino traçado por mãosinvisíveis. A Índia teria sido feita depositáriadas lições que um dia devolverão ao resto dahumanidade a pureza espiritual perdida numpassado remoto que teria levado consigo omanancial de saber que nutria o coração dosprimeiros homens. O destino da Índia seriaentão o de educar o mundo, ou melhor,reeducá-lo.A veracidade dessas assertivas não nos épossível comprovar. O fato é que desde o finaldo século dezoito, quando Sir William Jones

12paataÕala ya{gasaU«aaiNatraduziu para o inglês um grande númerode manuscritos da língua sânscrita (que elepróprio ajudou a decifrar), um poderosomovimento se formou arrastando asproduções do intelecto indiano para todasas partes do mundo. Um fascínio irresistívellevou o pensamento e a espiritualidadeindianas para a Alemanha, a Itália, a França,a Inglaterra, e daí para quase todos osdemais países do ocidente.Dessa corrente migratória que já temdois séculos faz parte a popularização daprática e do estudo do Yoga. No entanto,esta disciplina indiana chegou ao ocidentede uma maneira um tanto inadequada,descrita pelo ponto de vista de algunsmestres modernos que se atêmexcessivamente às práticas corporaisdeixando omissos os elementos filosóficosdo Sistema. A solução para cobrir essalacuna histórica é promover a difusão dosYoga Sutras de Patañjali, que devolvem ocaráter filosófico ao estudo do Yoga.Nosso entusiasmo com o conteúdo dosensinamentos do Yoga nos estimulou adesenvolver um trabalho que nos permitisseoferecer aos interessados uma traduçãosimples e direta. Baseada em nossaexperiência particular com a matéria, temse mostrado bastante eficiente nos cursosque temos ministrado para futurosprofessores de Yoga nas últimas décadas.Queremos deixar claro que não é umatradução que siga a interpretação de algumaescola ou mestre em particular e quetambém está longe de se considerardefinitiva, devendo ser objeto de retificações

Os Yogasutras de Patañjali13futuras por tradutores mais habilitados. Esteé o nosso sincero desejo.A palavra indiana Darçana(pronuncia-se “dárchana”)tem origem no verbo dqç,que significa “ver”.Expressa uma maneira deobservar as coisas, umponto de vista. Com ela sedesignavam os sistemasfilosóficos.Os seis sistemas considerados ortodoxos dentro datradição hinduísta eram:Samkhya, Yoga, Nyaya,Vaiçeshika, PurvaMimamsa e UttaraMimamsa, este último bemmais recente que os demais,e conhecido como“Vedanta”.O Yoga é talvez o mais difundido sistemafilosófico (darçana) indiano. Cada SistemaFilosófico da Índia está baseado numa obrafundamental que lhe dá os princípios gerais edelineia sua estrutura lógica.Os sutras ou aforismos do Yoga, deautoria atribuída a um sábio de nome Patañjali,foram a obra fundamental do sistema filosóficodo Yoga. Resumem aquilo que seconvencionou chamar de Ashtangayoga, e queSwami Vivekananda rebatizou como RajaYoga.Patañjali teria sido o compilador destaobra que, segundo a tradição, é o resumo e oresultado de alguns séculos de debates entrefilósofos e praticantes do Yoga. Não se sabe adata precisa de sua redação original, mas oestilo Clássico da versão atual indica que estaúltima deve ter sido preparada durante adinastia Gupta, entre os Séculos III e V d.C. Oconteúdo, por outro lado, sugere que suacomposição possa ter ocorrido antes disso, porvolta do século IV a.C., quando o Budismoestava em seus primórdios.Seus ensinamentos básicos concordamcom a ortodoxia Brahmanica, que está apoiadanos Vedas e subseqüentes textosinterpretativos. Por esta razão o Yoga éconsiderado como um dos seis SistemasFilosóficos que compõem a ortodoxia filosóficada Índia. Cabe dizer, porém, a título deinformação, que dentre os demais Sistemas,chamados heterodoxos, encontramos produçõescuja profundidade filosófica e alcance histórico

14paataÕala ya{gasaU«aaiNaigualaram ou mesmo superaram aortodoxia, como é o caso do Jainismo e doBudismo.O principal mérito dos sutras do Yogafoi o de estabelecer um código regulador daprática, baseado em preceitos éticos e numadelimitação dos conceitos teóricosenvolvidos.A prática indiscriminada do Yogainduz muitos praticantes a erros de método,que podem causar danos ao organismofísico e psíquico. Mas o erro mais freqüenteé de natureza conceitual, fazendo uma boaparte dos praticantes considerar que aperfeição do corpo é imprescindível para aprática adequada do Yoga.Os sutras tornam evidente o fato de queo Yoga é uma disciplina que trabalha com amente, e que o corpo é apenas umaferramenta adicional para o corretodesempenho prático.Fica claro que um deficiente físico estátão apto à prática do Yoga quanto umsaudável atleta, desde que em ambos existauma sincera disposição à disciplina dopensamento e do comportamento.A prática do Yoga também não exige aclausura ou o isolamento do praticantesenão nos momentos de meditação, quandoé conveniente a ausência de perturbações nolocal do exercício. No mais ele pode, e atédeve, ser realizado dentro do ambientesocial habitual do Yoguim. Ao seguir ospreceitos do yoga descobrimos maneirasmais adequadas para a vida comunitária.A simplicidade na forma foi o critérioadotado para a redação sânscrita deste texto.As frases trazem apenas o essencial,A prática do sistema do Yogacomeça por 5 preceitos deordem ética: praticar a nãoviolência (ahimsa), livrar-se dacobiça (aparigraha), não roubar(asteya), e viver uma vidadevotada à espiritualidade(brahmacarya), baseada numforte compromisso com averdade (satya).

Os Yogasutras de PatañjaliVyasa é apresentado pelatradição como um grandesábio, contemporâneo deKrishna e membro damesma grande família dosReis Lunares. Se diz queditou a saga de sua famíliapara que jamais fosseesquecida, e essa história é oMahabharata, o maior épicodo mundo, com cerca decem mil versos duplos.Muitos panditas hindusaceitam o ano de 3.102 a.c.como data da morte deKrishna.Oficialmente se acredita queos Sutras tenham sidocriados em algum momentoentre a entrada de Alexandre, o Grande, na Índia(324 a.c.) e meados doImpério Gupta (séc. IV d.c).O Vyasa do Mahabharatanão poderia ter comentadoum texto que só surgiu trêsmil anos após a sua época.Alguns brahmanes, noentanto, estimam idadespara as obras literárias daÍndia que são muitosuperiores às apresentadaspelos historiadores doOcidente.15reservando-se os necessários esclarecimentospara o ensinamento direto, dado de viva vozpelo instrutor. Alguns mestres maisdestacados foram imortalizados emcomentários escritos que acompanham o textoem certos manuscritos.O comentarista mais famoso éVyasadeva, a quem se atribui um bompunhado de outras obras, entre as quais océlebre épico Mahabharata, de onde saiu omais popular texto literário da Índia, aBhagavad Gita.A palavra sânscrita “sutra” vem da raiz“siv” que significa “costurar”. Os textoschamados sutras apresentam, de fato, acaracterística da linearidade em que cada fraseé uma decorrência lógica da frase anterior eleva o fio do raciocínio a um encadeamentonecessário com a frase que se segue.Os sutras eram escritos para oaprendizado de temas complexos, e deviamser memorizados integralmente peloestudante. A finalidade de sua estrutura linearera facilitar o esforço de memorização. Alémdisso, nenhum sutra deveria ser muito extenso,pela mesma razão.São menos de duzentos os aforismos quedescrevem e explicam todo o Sistema. Seunúmero exato varia de conformidade com omanuscrito consultado, que pode ter algumasfrases a mais ou a menos. É praticamenteimpossível identificar interpolações ouadulterações, já que não conhecemos a versãooriginal e autêntica deste texto.Devido a estas características, é evidenteque a tradução de um sutra precisanecessariamente oferecer como resultado umtexto no qual a leitura linear, frase a frase, seja

16paataÕala ya{gasaU«aaiNaformal e semanticamente coerente. Este é omelhor critério a ser adotado na leituracrítica do texto que ora apresentamos.O original sânscrito que adotamos paraesta nossa tradução tem 196 aforismos.Curiosamente em nenhuma das publicaçõesque pudemos consultar são citadas as fontesdesses originais. No entanto o textoapresentado por todas elas é idêntico, excetoem alguns poucos detalhes.Há três aforismos que aparecem noterceiro capítulo - os sutras 20 e 22 nãoaparecem em todas as edições, e o sutra 41aparece com uma pequena variação emdeterminadas versões. Neste trabalhooptamos por não omitir qualquer dos sutras,e apresentar a variação do 41 em uma notacomplementar.Em Vivekananda e William Q. Judge,o quarto Capítulo tem apenas 33 sutras, emlugar dos 34 dos demais.

Os Yogasutras de Patañjali17A Tradução dos Sutras do YogaQuem se propõe a realizar a tarefa datradução dos aforismos do sábio Patañjali enfrenta um obstáculo inesperado: o grande número de traduções já existentes, assinadas pornomes de pensadores expressivos e respeitados entre os praticantes e estudiosos do Yoga.Ainda que o tradutor tenha uma saudável independência em relação a outras opiniões, eledificilmente escapa da tentação de examinar oque outros autores e tradutores fizeram paraelucidar determinados termos do originalsânscrito. E o peso da autoridade que determinados nomes representam interfere de formavigorosa na maneira como o empreendedorestabelece os seus próprios critérios de tradução.É muito comum o questionamento sobre as traduções, por parte dos leitores, baseado sobre outras traduções, e não sobre os termos originais da obra. Comentários do tipo“Eu li numa tradução de fulano que esse tópico deve ser entendido dessa maneira ou daquela.” são muito freqüentes quando se tratade literatura polêmica. E os Sutras do Yoga

18paataÕala ya{gasaU«aaiNaconstituem um texto bastante polêmico.Sem fazer pouco caso da autoridadede tantos autores de comentários aos Sutras,bem como dos seus tradutores, percebemosclaramente ao examinar as dezenas de traduções disponíveis na atualidade que se disseminaram amplamente alguns erros de método. Embora poucos, esses erros prejudicam o resultado do trabalho não obstante aqualidade e capacitação do tradutor. Aliás éjustamente a elevada qualificação de algunsdos tradutores, e o respeito que eles conquistaram entre os estudiosos da filosofia e ospraticantes do Yoga, que ajuda a manter vivas essas falhas na linha do tempo.A distorção mais comum é resultado de uma opinião corrente entre os adeptos do Yoga, segundo a qual não é possívelcompreender o texto dos Sutras sem a ajudade comentários elucidativos. A presença deum mestre seria indispensável, mas na faltadeste há os comentários escritos que procuram dirimir as dúvidas com extensas explanações a respeito dos principais tópicos tratados em cada frase.Embora não esteja longe da verdadeessa opinião, o problema que ela gerou foi ode deixar os tradutores muito preocupadoscom a elucidação de cada frase individualmente, o que tornou muito complicada a leitura seqüencial do texto. Os sutras eram textos construídos para facilitar a memorizaçãode um assunto determinado, normalmenteum sistema filosófico. A memorização erafeita com facilidade em razão do modo peloqual as frases eram construídas, de maneiraque cada uma fosse a seqüência lógica e natural da frase anterior, e a preparação paraO Sistema filosófico do Yoga étão simples que chega a irritar.Nada é mais injusto do quedizer que a filosofia do Yoga émuito complicada.Na verdade, a complicação sóapareceu com as traduções,algumas bastante distorcidas.

Os Yogasutras de Patañjali19os termos e conceitos da frase seguinte. A leitura, portanto, deve ser tão encadeada e natural quanto a própria seqüência das frases. Denada adianta, portanto, traduzir uma frase deuma maneira tão independente das demais quese torne difícil entender o vínculo linear queas une.A maior parte das outras falhas de tradução resultaram da tentativa de entender conceitos filosóficos indianos utilizando as interpretações ocidentais como referência. Apenascomo exemplo, a tradução de “viparyaya”, quesignifica apenas “inventividade”, por “conhecimento errôneo”, “falso”, “perverso”, “incorreto”, e tantos outros adjetivos que foram utilizados em quase todas as traduções é, semqualquer dúvida, um erro grosseiro de avaliação do verdadeiro significado do termo. Não éconcebível que uma manifestação do aspectomais elevado da mente humana possa ser encarada como um princípio defectivo por definição. Nem a frase original em sânscrito dizisso, por certo, embora utilize uma terminologia que pode dar alguma margem à interpretação equivocada.Para escapar das armadilhas habituaisdas traduções de textos dessa natureza, devemos partir do geral para o particular, e não oinverso. Neste trabalho optamos por buscar acompreensão dos temas gerais abordados notexto em cada um de seus quatro capítulos, traçando um plano geral da obra e descendo gradualmente aos detalhes até que cheguemos àelucidação de cada termo duvidoso, frase a frase. A idéia subjacente ao conjunto sempre prevalece sobre eventuais ambigüidades dos detalhes.Para permitir ao leitor acompanhar esse

20paataÕala ya{gasaU«aaiNamesmo procedimento – e, portanto, extrairmelhor proveito da leitura – reunimos alguns dos comentários que consideramos importantes para elucidar o texto nos capítulos que apresentamos a seguir. Desse modo,ao iniciar a leitura do texto, o estudante játerá alguma noção do que encontrará emcada capítulo. Comentários muito brevesacompanham ainda o corpo traduzido dosSutras, juntamente com notas e observaçõesem pontos críticos da leitura.Ao final, o texto é reproduzido literalmente, grafado em sânscrito (no alfabetooriginal - devanagari - e no alfabeto detransliteração adotado internacionalmentepara o sânscrito) e também traduzido parao português. Essa reprodução do originalserve aos estudantes da língua, bem comoaos críticos, estudantes de Yoga e curiosos,que queiram ter uma visão panorâmica dacorrespondência dos termos. O que você, leitor, poderá seguramente extrair da leitura,seja qual for a motivação que o trouxe atéeste texto, é que o entendimento dos Sutrasé bastante fácil, e exige apenas um mínimode dedicação. As dificuldades só aparecemquando decidimos converter essas doutrinasem uma realização prática. Este foi o grande desafio apresentado pelo sábio Patañjali.

Os Yogasutras de Patañjali21O Plano da ObraOs Sutras do Yoga têm por objetivo darao estudante uma noção precisa do que é oYoga e de que maneira se deve praticá-lo. Nãose trata de um manual prático, no sentido deque não são ensinadas as posturas ou os exercícios respiratórios que caracterizam o HathaYoga, nem se dá informações sobre o local daspráticas, as datas e horários propícios, a duração, a extensão das atividades, nem tantos outros detalhes que muitos estudantes gostariam talvez de conhecer. Para esse tipo de informações há outras obras clássicas de Yoga quepodem ser consultadas, como o GherandaSamhita e o Hatha Yoga Pradipika.Este corpo resumido de doutrina filosófica trata apenas de esclarecer os conceitosenvolvidos na prática do Yoga, sem detalharas formas assumidas por essa mesma prática.Seria um exagero, porém, considerá-lo um texto puramente teórico, pois toda a sua orientação é voltada para a viabilização mais seguradessa mesma prática.Os Sutras do Yoga se estendem por cen-

22paataÕala ya{gasaU«aaiNato e noventa e seis aforismos repartidos emquatrocapítulos.Estãodispostosseqüencialmente de modo a traçar um roteirode fácil memorização abrangendo todos ospontos essenciais do sistema. O primeiro capítulo é o que traz a maior variedade de assuntos, uma vez que trata de apresentar resumidamente todos os requisitos à prática do Yoga.Esses mesmos requisitos serão observados nosegundo capítulo sob uma ótica mais prática,que apresenta os oito passos da realização doYoga (Yama, Niyama, Asanas, Pranayama,Pratyahara, Dharana, Dhyana e Samadhi). Oterceiro capítulo tem por tema a meditação doYoga (samyama) e os resultados que ela produz. O último capítulo trata do objetivo finaldo Yoga, o Kaivalyam.No início do texto, a preocupação doautor é com o estabelecimento do escopo doseu trabalho. As duas primeiras frases do texto dão conta da natureza dos Sutras e da natureza do Yoga.O primeiro sutra diz “Aqui estão ospostulados mais elevados do Yoga”. Os termosutilizados são enfáticos. As palavras são: atha,que é o termo de abertura de boa parte dos tratados indianos, que pode ser traduzida comouma apresentação do tipo “Aqui estão” ou “Eisaqui”; e Yoganuçasana que é um composto nominal. Nesse composto aparece a palavraanuçasana, formada pelo prefixo anu que significa elevado, proeminente, máximo, e pelapalavra çasana que é um ensinamento imposto, ou seja, um postulado. A raiz é ças que significa açoitar, castigar.Patañjali deixa bem claro nesta frase de“Aforismo, s.m. Sentença brevee conceituosa; máxima;provérbio. (Do gr. aphorismos)”In “Dicionário Brasileiro da LínguaPortuguesa”

Os Yogasutras de Patañjali23abertura que não está apresentando um textoaberto a sugestões. Quem deseja estudar oYoga deve aceitar o conteúdo dos Sutras talcomo é apresentada, sem alterações. O sutra éum tipo de texto que, habitualmente, surgia aofinal de longos períodos de debates, duranteos quais as idéias tratadas amadureciam nocalor de acirradas disputas verbais. Quando oconsenso se formava e o sistema filosófico resultante parecia consistente, algum dentre osmelhores praticantes do sistema era convidado para elaborar os aforismos que o perpetuariam. Daí o zêlo em relação ao seuquestionamento. Um debate de séculos entreindivíduos que orientavam suas vidas pelospreceitos que apregoavam, como sempre fazem os sábios iniciados, não poderia ser reaberto, sem mais nem menos, por um iniciantequalquer.Depois de deixar bem claro que osSutras devem ser preservados da forma queestão, o autor entra no assunto definindo combrevidade o que é o Yoga. ya{gaiéaÞava&iÞainar{Da: 2 Yogaçcittavqttinirodhaf 2 É aqui que começam as disputas entretradutores. São apenas quatro palavrassânscritas, que precisam ser adequadamentecompreendidas para que tenhamos uma definição precisa do que é o que se identifica pelonome Yoga. Embora a leitura dos sutras seja ocaminho natural para encontrar seu significado, vamos passar agora de forma abreviada osentido geral de que elas estão investidas nesta obra.

24paataÕala ya{gasaU«aaiNaUtilizando as palavras originais, afrase diz apenas: “o Yoga é o nirodha dasvqttis de citta”. Precisamos, portanto buscaro significado de cada uma das três palavrasutilizadas para descrever o Yoga. Começamos com nirodha, que se origina da raiz verbal rundh impedir, reter, segurar, modificada pelo prefixo “ni” que indica um movimento para dentro. nirodha é o recolhimento, o ato de trazer para dentro algo que seespalhou do lado de fora.Aquilo que se espalhou “do lado defora” e que precisa ser recolhido é designado pela palavra vqtti. O significado literaldesta palavra é o de um movimento circularde expansão ou avanço, como uma espiral um desdobramento a partir de um pontooriginal (é também a palavra utilizada parao “rolar” das lágrimas). Uma palavra que temos em português derivada da mesma origem é “vórtice”, com um significado bastante semelhante. O sentido do termo vqtti estávinculado à idéia de uma manifestação exterior. As vqrttis seriam, portanto, expansõesradiais de uma entidade central, espiritual,que partem em direção ao mundo manifestado.A entidade central, cujas expressõesmanifestadas, ou vqttis, estariam sendo recolhidas com a prática do Yoga, é designada pela palavra citta. Derivada do verbo cint- pensar - essa palavra remete a um aspectomuito peculiar da estrutura anímica do serhumano. Ela nomeia o centro espiritual damente humana. É a fonte da qual derivamtodos os fenômenos da consciência. Citta éum eixo em torno do qual giram as ativida-A figura do Çri Yantra podeser utilizada como umdiagrama para visualizar omovimento de expansão dasvrttis de citta em direção aosquatro aspectos limitadores domundo material: a matéria, aforma, a mutabilidade e otempo.“As ondas de pensamento quese levantam em citta sãochamadas vrttis (literalmente:redemoinhos)”Swami Vivekananda

Os Yogasutras de PatañjaliO movimento de expansãoespiralada das vqttis decitta poderia ser ilustrado,por exemplo, pelo triskelioncelta ou pela própriasvastika, que é o símbolosagrado do hinduismo.Jonas no ventre da baleia[ilustração de umpsaltério medievalreproduzida em “DiePsalterillustration immittelelter”, de JohanJakob Tikkanen - 1903]Um equivalente ocidentalde citta como presençaoculta dentro das vrttis.A baleia é idêntica ao“makaram” da mitologiaindiana.25des mentais do ser humano, e que lhe dá asvqttis, suas ferramentas para a existência consciente e para a percepção de sua própria individualidade.Apesar de estar na origem da nossavida consciente, citta não está limitado à esfera dos fenômenos da consciência. Sua verdadeira natureza está mais próxima do que a psicologia identifica como o lado inconsciente denossa mente. Citta nos dá todas as características que diferenciam nossa existência daquelade um simples animal, entre as quais merecedestaque no hinduísmo a nossa capacidade desentir ánanda - uma espécie de felicidade espiritual. Esse sentimento é uma exclusividadehumana, que percebemos como uma satisfação indescritível que experimentamos ao fruiruma obra de arte, ou ao realizar um trabalhoque nos agrada e nos absorve inteiramente aatenção.Citta, além de ser a origem e sustentáculo de nossa vida mental consciente, é também descrito como um observador silenciosodas ocorrências do mundo. Não um mero observador, mas também um canal pelo qualgrandes forças espirituais se encontram comas formas materiais inertes, iniciando uma lutaentre naturezas opostas. Uma luta da qual resulta a vida, tal como a conhecemos. Essas forças são justamente as vqttis. Citta jamais se apresenta diretamente no mundo, senão por meiodas vqttis, e como uma presença “essencial” portrás de nossa própria presença pessoal.Citta tem a capacidade de projetar concretamente no mundo essa sua presença, deforma espontânea e natural. O poder dessaprojeção é aquela força da alma que os alqui-

26paataÕala ya{gasaU«aaiNamistas identificavam como indispensável àexecução de sua obra, e é também o conjunto das forças criadoras da matéria, representadas pela figura simbólica da cornucópia(um vórtice em forma de chifre, que tem apropriedade de materializar os desejos dequem o possui). Também em formato de chifre retorcido numa espiral é o animal aquático misterioso que os indianos chamam de“makaram”, o mesmo que dá nome ao décimo signo do zodíaco hindu (equivalenteidêntico do nosso capricórneo) e que está associado ao elemento “akasham” - a substância que é o veículo das forças criadorasdo universo mítico indiano. Todos símbolos representativos dos movimentos decircunvolução das vqttis em seu frenesi demanifestação.Citta projeta no mundo seus desdobramentos, as vqttis, e com elas dá origem ànossa existência individual e consciente. Asvqttis, porém, animadas pela força projetivaque as originou, continuam a se dividir e espalhar pelo mundo com uma necessidadecrescente de se associar aos objetos diferenciados que encontram. Cada objeto que sejacapaz de apresentar alguma característicaque sugira a presença de citta atrai essas projeções com uma força irresistível e as vqttisbuscam se apropriar desses objetos como sea sua própria existência dependesse disso.Daí se originam os desejos, que por uma deformação de orientação, afastam as vqttis desua origem, em lugar de facilitar sua reintegração com citta.A prática do Yoga (um esforço deatrelamento ou integração) tem por objeti-A alquimia não era umaciência estranha aos indianos,conforme demonstram essasilustrações representativas deaparatos alquímicos.

Os Yogasutras de Patañjali27vo justamente a reintegração das vqttis, ou seja,o seu recolhimento [nirodha] novamente emcitta. Este é o significado literal da segunda frase dos Sutras de Patañjali.Quando temos umafacilidade natural paraexecutar determinadastarefas, ou seja, quandomanifestamos um

Os sutras ou aforismos do Yoga, de autoria atribuída a um sábio de nome Patañjali, foram a obra fundamental do sistema filosófico do Yoga. Resumem aquilo que se convencionou chamar de Ashtangayoga, e que Swami Vivekananda rebatizou como Raja Yoga. Patañjali teria sido o compilador desta obra que, segundo a tradição, é o resumo e o