Congresso Internacional Fernando Pessoa

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28–30NOVTeatro Aberto · LisboaCONGRESSOINTERNACIONALFERNANDOPESSOA2013

ÍndiceNota de publicação. 4Lista de participantes. 6Programa. 8Texto de abertura. 16Índice de comunicações. 20Notas biográficas.36823

Notade publicaçãoNos dias 28, 29 e 30 de Novembro de 2013 realizou-se a terceira ediçãodo Congresso Internacional Fernando Pessoa, organizado pela CasaFernando Pessoa no Teatro Aberto, em Lisboa.Informações sobre este programa, nomeadamente os resumos das conferências apresentadas, podem ser encontradas te documento publicam-se os textos que nos foram entregues pelosseus autores, resultantes dessas participações.Agosto 201745

Lista departicipantesConferencistas:Moderadores:Aldous EveleighFilipa LealAna Luísa AmaralInês Fonseca SantosAnna M. KlobuckaJosé Carlos VasconcelosAntonio CardielloMaria Manuel VianaAntónio FeijóPatrícia ReisBartholomew RyanRui LagartinhoBernard McGuirkBrunello Natale de CusatisCeleste MalpiqueEduardo LourençoFabrizio BoscagliaFernando Cabral MartinsFernando J. B. MartinhoFernando Pinto do AmaralJerónimo PizarroJoana Matos FriasJosé BarretoJosé Paulo Cavalcanti FilhoJosé GilKenneth David JacksonLélia Parreira DuarteLuiz RuffatoMaria BochicchioManuela Parreira da SilvaMariana Gray de CastroMariano DeiddaOrietta AbbatiPatricio FerrariPaulo BorgesPatrick QuillierPiero CeccucciRichard ZenithRinaldo GamaRoberto VecchiSteffen DixSusan Margaret BrownTeresa Rita LopesThomas CousineauZbigniew Kotowicz67

Programa

28 NOVPausa para almoço9H3014H30 -15H3017H15 – 18H15Recepção aos CongressistasPainel: O perfeito não se manifestaJ. Paulo CavalcantiPainel: Agir,eis a inteligência verdadeira10H00O perfeito não se manifestaSessão de aberturaBartholomew RyanSteffen Dixcom a Directora da Casa Fernando Pessoa, InêsA localização do sensacionismo: o modernismogenuíno de Pessoa numa perspectiva históricae filosófica“Who’s there?”:a Repetição de Pessoa e a Crise do SujeitoPedrosa, o Presidente da Junta de Freguesia deCampo de Ourique, Pedro Cegonho, e a Vereadorada Cultura da Câmara Municipal de Lisboa,Catarina Vaz Pinto.10H30Conferência de abertura:Livro do Desassossego:o romance possível (var.:impossível)Richard Zenith11H15Pausa para café11H30 - 12H30Painel: Tudo na vidaé intervalo e passagemMaria Bochicchio“Contra factos é que há argumentos”: algumasquestões de crítica textual em Álvaro de Campos.JOSÉ CARLOS VASCONCELOS · MODERAÇÃO15H30Debate15H45 – 16H45Painel: Pois que importa inventar o que não presta?Bernard McGuirkEngenharia / bricolage. Naveg (N) ações .Ils ont changé ma chansonA poesia de Ricardo Reis entre pedagogismoe desistência.José GilCartografia de Afectos no Livro do DesassossegoO homem deve poder ver a sua própria caraCartas não mandadas (ou cartas para não mandar)Patrick QuillierO feminino em Fernando PessoaINÊS FONSECA SANTOS · MODERAÇÃO12H30Ler com ou ler contra – e tudo muda de figuraFabrizio BoscagliaFernando Pessoa e a cultura Árabe-Islâmica:de Al-Cossar a Omar Khayyam”PATRÍCIA REIS · MODERAÇÃO18H15Debate18H30Apresentação do livroOs Objectos de Fernando Pessoa,2º volume da colecção Acervoda Casa Fernando PessoaOrietta AbbatiAntonio CardielloMaria Manuela ParreiraMaria de Lurdes Sampaio21H30Concerto de Mariano Deidda– MensagemLEONOR XAVIER · MODERAÇÃO16H45Debate17H00Pausa para caféDebate1011

29 NOVPausa para almoço10H00 – 11H0014H30 – 15H3017H15 – 18H15Painel: Narrei-me à sombrae não me achei sentidoPainel: Sentir é criarPainel: Saúdo todosos que me leremEduardo LourençoTeresa Rita Lopes“Crianças, ainda tecendo auréolas germinantes”:Mãos Ancestrais em O Livro do DesassossegoO Desassossego PessoanoFernando Cabral MartinsO sujeito interseccionistaMARIA MANUEL VIANA · MODERAÇÃO11H00Debate11H15Pausa para café11H30 – 12H30Painel: A arte é o aperfeiçoamento do mundo exteriorJerónimo PizarroTodo Pessoa no DesassossegoMariana Gray de CastroSobre rios, romantismos e revisitações:Lisbon Revisited (1926)Piero CeccucciEu, “o privilegiado da janela”.A poética do olhar da janela em Fernando Pessoa.RUI LAGARTINHO · MODERAÇÃO12H30DebateThomas CousineauAnna KlobuckaLélia Parreira DuarteFernando Pessoa ativista queer:Uma releitura de AntínousPintando a negatividade de Fernando PessoaPaulo BorgesRoberto VecchiMistério trans-ontológico e transfiguraçãodo mundo em Álvaro de CamposMorfologia da sensação:Pessoa e os espaços brancos do aforismoPATRÍCIA REIS · MODERAÇÃOSusan BrownO Deus que dormeRUI LAGARTINHO · MODERAÇÃO15H30Debate18H15Debate15H45 – 16H45Painel: A literatura é a maneiramais agradável de esquecera vida21H30Concerto: Universus EnsembleJoana Matos FriasTransfoma-se o espectador no próprio espectáculo:Bernardo Soares e o seu “espectáculo sem enredo”Kenneth David JacksonIn sci ente (arcaico): A arte e a ciência do não-saberPatricio FerrariPseudónimos, Heterónimose outras figuras literáriasFILIPA LEAL · MODERAÇÃO16H45Debate17H00Pausa para café1213

30 NOVPausa para almoço10H00 – 11H0014H30 – 15H30Painel: A liberdadeé a possibilidade do isolamentoPainel: E hoje é já outro diaFernando J. B. MartinhoO homem que era nadaA liberdade segundo CamposLuiz RuffatoJosé BarretoFernando Pessoa, o outroO nacionalismo liberal de Fernando PessoaFernando Pinto do AmaralZbigniew KotowiczSair de si, cair no outroAlberto Caeiro – meditações pré-socráticasFILIPA LEAL · MODERAÇÃOAntónio FeijóRUI LAGARTINHO · MODERAÇÃO15H3011H00DebateDebate15H45 – 16H4511H15Pausa para caféPainel: Só a arte é útilAldous EveleighDesfile de Identidade11H30 – 12H30Painel: De tanto ser,só tenho almaMarianno DeiddaA arte de musicar a poesiaAna Luísa AmaralRinaldo GamaQualquer coisa de intermédioAlberto Caeiro e a poética da negaçãoINÊS FONSECA SANTOS · MODERAÇÃOBrunello de CusatisO Desassossego religioso de Fernando Pessoa16H45Celeste MalpiqueDebateA alma solitária de Fernandono Livro do Desassossego17H00MARIA MANUEL VIANA · MODERAÇÃOPausa para café12H3018H00DebateEntrega da Ordemdo Desassossego19H00Leitura d’ Ultimatum de Álvarode Campos por Diogo Dória19H40Encerramento1415

Texto de aberturaVenha à manifestação do desassossego!Quando se celebram os 125 anos do autor de Livro do Desassossego, aCasa Fernando Pessoa reúne mais de quarenta investigadores, críticos,tradutores e criadores de variados países que encontram neste escritoruniversal alento e inspiração para os seus percursos académicos ou artísticos. Pensamos que a vocação essencial da Casa onde o Poeta viveuos seus derradeiros quinze anos e onde se lê a sua Biblioteca Pessoal é ade promover o encontro entre toda a espécie de leitores da sua obra, e estimular o estudo e a criação a partir dela. A eternidade de um autorconstrói-se num diálogo efectivo, activo, profundo, com os seus textos.Por isso lançámos, em 2008, este Congresso de contornos transdisciplinares e informais. Esta é a terceira edição, e a mais participada.Realizamo-la uma vez mais no Teatro Aberto, um teatro de auspiciosonome que tem realizado um trabalho a todos os títulos notável na afirmação da dramaturgia de expressão portuguesa. Contamos com o entusiasmo das entidades que nos têm apoiado, bem como dos congressistasconvidados, para conseguirmos que este Congresso continue a crescer.Lisboa merece acolher regularmente os amantes de Pessoa. Sejam bem-vindos. E que este seja um encontro transformador.Inês Pedrosa (directora Casa Fernando Pessoa 2008-2014)

Comunicações

Índice decomunicações«Ut Melius Quicquid Erit Pati». A Poesia«Children Still Weaving Budded Aureoles’:de Ricardo Reis entre Pedagogismo e DesistênciaAncestral Hands in The Book of Disquiet»Orietta Abbati. 24Thomas Cousineau.154Qualquer coisa de IntermédioO Desassossego Religioso de Fernando PessoaAna Luísa Amaral. 40Brunello Natale de Cusatis.164Sair de si, cair no OutroA Localização do Sensacionismo:Fernando Pinto do Amaral. 42O Modernismo Genuíno de Pessoa numaPerspectiva Histórica e FilosóficaNacionalismo Liberal e Fernando PessoaSteffen Dix. 172José Barreto. 44Pintando a Negatividade de Fernando Pessoa«Contra Factos é que há Argumentos»: AlgumasLélia Parreira Duarte . 174Questões de Crítica Textual em Álvaro de CamposMaria Bochicchio. 58Modern Art in Pessoa’s LifeAldous Eveleigh. 192Mistério Trans-Ontológico e Transfiguraçãodo Mundo em Álvaro de Campos“O Homem que era Nada”Paulo Borges. 70António Feijó. 198Fernando Pessoa e a Cultura Árabe-Islâmica:Pseudónimos, Heterónimos e outrasde Al-Cossar a Omar KhayyamFiguras LiteráriasFabrizio Boscaglia. 80Patricio Ferrari. 200O Deus que dormeTransforma-se o EspectadorSusan Brown. 96no próprio Espectáculo:O Desassossego Fílmico de Fernando PessoaO Homem deve poder ver a sua CaraJoana Matos Frias. 202António Cardiello. 112Alberto Caeiro e a Poética da NegaçãoSobre Rios, Romantismos e Revisitações:Rinaldo Gama. 220«Lisbon Revisited (1926)»Mariana Gray de Castro. 114Cartografia de Afectos no Livro do DesassossegoJosé Gil .226O Perfeito não se ManifestaJosé Paulo Cavalcanti Filho.124«Ins ci en te (Arcaico):A Arte e a Ciência do Não-Saber»Eu, «O Privilegiado da Janela». A Poética do OlharKenneth David Jackson.228da Janela em Fernando PessoaPiero Ceccucci.1402021

«Fernando Pessoa Ativista Queer:Cartas não mandadasUma Releitura do ‘Antinous’»(Ou Cartas para não mandar)Anna M. Klobucka.236Manuela Parreira da Silva. 334Alberto Caeiro – Presocratic MeditationsMorfologia da Sensação:Zbigniew Kotowicz. 246Pessoa e os Espaços Brancos do AforismoRoberto Vecchi. 344Desassossegos PessoanosTeresa Rita Lopes.256Livro do Desassossego:O Romance Possível (Var.: Impossível)Outra vez te revejoRichard Zenith .352Eduardo Lourenço. 264A Alma Solitária de Fernandono «Livro no Desassossego»Celeste Malpique. 266Engenharia/Bricolage Naveg(N)Ações.Ils ont changé ma chansonBernard McGuirk.274A Liberdade, segundo Campos» (1929-1930)Fernando J. B. Martinho.282O Interseccionismo como Vector de OrpheuFernando Cabral Martins. 290Muitos DesassossegosJerónimo Pizarro. 300O Feminino em Fernando PessoaPatrick Quillier. 316«Who’s There?»:A Crise e a Repetição do Eu em Fernando PessoaBartholomew Ryan. 318O Homem que tinha Urgência de ViverLuiz Ruffato . 3302223

«Ut Melius1Quicquid Erit Pati» .A Poesia de RicardoReis entre Pedagogismoe DesistênciaOrietta AbbatiUniversidade de TurimNa encenação pessoana do «drama em gente», o heterónimo Ricardo Reis, segundo discípulo do mestre Caeiro, ainda que já prefigurado anteriormente naaparição do autor de O Guardador de Rebanhos no conhecido «dia triunfal»2, desempenha um papel «enganosamente» circunscrito e claro, construído na basedo preceito caeiriano. Ou seja, mantendo-nos fiéis às próprias palavras deRicardo Reis, se Alberto Caeiro representa «a reconstrução do sentimento pagão», o autor das odes encarrega-se da reconstrução da estética pagã. A eficazexpressão, com que Pessoa enquadra sinteticamente a figura do heterónimonascido no Porto, definindo-o como um «Horácio grego que escreve em português», por si só parece traçar confins bem definidos para o seu campo estético-poético: na margem menos mediterrânica do continente europeu apareceuo poeta símbolo da antiguidade clássica, a síntese mais glacial e límpida de umainteira civilização, cujo desaparecimento foi o resultado nefasto da afirmaçãodo «cristismo».Basta ler as arcaizantes odes de Reis para entrar, não sem uma sensação de estranheza, num mundo poético aparentemente descontextualizado, a séculos dedistância dos fermentos das vanguardas do século XX, facto que acaba por testemunhar e, ainda mais, confirmar a surpreendente capacidade de Pessoa semovimentar em simultâneo nos âmbitos estéticos e estilísticos por sua vez distantes entre si e colocados em oposição um com o outro. Álvaro de Campos, deresto, é disto a prova mais vívida e estimulante.Não será necessário recordar como a poesia de Ricardo Reis, embora com menorfrequência, se tenha de imediato oferecido para análise dos estudiosos, atraídosprecisamente pelo seu estilo clássico e explicitamente imitativo do poeta latino,cuja presença no texto reisiano emerge muito para lá de uma evidente quantoprevisível relação intertextual3.Contudo, o levantamento pontual e sempre rico de linhas de reflexão dos elementos clássicos nas odes de Ricardo Reis, se por um lado confirma as palavrasde Álvaro de Campos, quando afirma que «Reis tem a frieza de um belo túmuloou de um maravilhoso rochedo sem sol nem onde haver musgos»4, por outro não2Referências a Ricardo Reis aparecem em vários textos de Fernando Pessoa. O próprio autor conta, na conhecida cartasobre a génese dos heterónimos, dirigia a Adolfo Casais Monteiro, como «Aí, por 1912, salvo erro (que nunca pode sergrande), veio-me à ideia de escrever uns poemas de índole pagã. Esbocei umas coisas em verso irregular (não no estiloÁlvaro de Campos, mas num estilo de meia regularidade), e abandonei o caso. Esboçara-se-me, contudo, numa penumbra mal urdida, um vago retrato da pessoa que estava a fazer aquilo. (Tinha nascido, sem que eu soubesse, o RicardoReis).» Outra referência a Reis aparece num documento datado de 1915, em que se pode ler: «O Dr. Ricardo Reis nasceudentro da minha alma no dia 28 de janeiro de 1914, pelas 11 horas da noite.» PESSOA, F. Teoria da Heteronímia (ed. de F.Cabral Martins e R. Zenith), Lisboa: Assírio & Alvim, 2012, p. 277 e p. 301.3É obrigatório citar o estudo circunstanciado, ainda que limitado a algumas poesias, de PEREIRA, H. da Rocha, ReflexosHoracianos nas Odes de Correia Garção e Fernando Pessoa (Ricardo Reis), Porto: 1958.4CAMPOS, Á. de. «Notas para a recordação do meu mestre Caeiro», PESSOA, F., op. cit., p. 320.(Este texto foi escrito segundo o Novo Acordo Ortográfico de 1990, por opção da autora)1124«Quanto melhor é suportar o que será», HORÁCIO, «Ode XI», in Libro I.25

obscurece, pelo contrário, deixa intacta a perceção de uma poesia que, mesmoTendo em conta estes conceitos, Reis/Pessoa, atribui à moral epicurista «[.] aconstruída sobre um pilar antigo, sentimos como moderna, ou seja, apercebe-tendência para a felicidade pela harmonização de todas as faculdades humanasmo-nos de que «esse fundo comum cristalizou em composições absolutamente[ ]»8, enquanto cabe à moral estoica subordinar as «qualidades inferiores do es-novas»5. A tensão entre a que Campos definiria como «gaiola» formal da poesia epírito às superiores, mas superiores e humanas».a força nela encerrada, ou, para recorrer ainda às palavras do engenheiro, «oconteúdo emotivo e intelectual» da poesia de Reis configura-se como elementoAssenta portanto, também sobre esta base, a escrita poética arcaizante deconstante, cuja distribuição varia na construção do percurso poético das odes,Ricardo Reis, que metaforicamente se torna eixo central da reconstrução e rea-deixando entrever uma diferente intensidade, articulada através do uso mais oufirmação das superiores qualidades humanas. Isto faz com que não apareça con-menos frequente de pontuais referências à poesia latina, que vão da citação li-traditória uma escolha que, embora leve muito longe da contemporaneidade osnear ao emprego de construções e lexemas da língua de Horácio. Enfim, o mun-elementos formais da poesia deste heterónimo, nunca esquece o objetivo irre-do clássico, com as suas representações míticas e presenças divinas, tiradas danunciável de Fernando Pessoa ao instituir-se como o tal «supra Camões», outradição horaciana, com Ricardo Reis, longe de ser um mero exercício de arteseja, como reconstrutor de uma civilização e de uma literatura sob o signo depoética, contém, às vezes de forma oblíqua, o núcleo central da reflexão pessoa-Portugal9. De resto, já numa longa carta, enviada em 19 de janeiro de 1915 ana, como a busca de um sentido para a existência, a ânsia de conhecimento, oArmando Côrtes-Rodrigues, Pessoa revela quase como obsessiva mas impres-mergulhar no mistério, nunca abandonados, que aqui se vai desenvolvendo e re-cindível a própria tarefa, ao ponto de lhe confessar: «[.] fazer arte, parece-mevelando gradualmente.cada vez mais importante coisa, mais terrível missão – dever a cumprir arduamente, monasticamente, sem desviar os olhos do fim criador-de-civilização deA imitação formal, reforçada pelo uso sábio de latinismos distribuídos no verso,toda a obra artística»10.implica em si mesmo a assunção de alguns temas caros ao poeta latino e do pensamento nele expresso, tanto que podemos ler num texto em prosa atribuído aoDe facto, a disciplina, que para Ricardo Reis constitui «a única deusa ética dosirmão de R. Reis, Frederico: «Resume-se num epicurismo triste toda a filosofiaestoicos, [ ] que é a base real das doutrinas éticas do paganismo»11 aparece nasda obra de Ricardo Reis»6. De facto, verificado que Ricardo Reis da poesia deprimeiras odes publicadas, como proposta e solicitação a seguir, desempenhan-Horácio privilegia a lírica intimista, o heterónimo encontra nela um modelo so-do quer a função salvadora da poesia como sinal de equilíbrio e permanênciabre o qual «esculpir» os seus versos, nos quais parecem dominar a necessidadenum tempo e num mundo que fogem, quer uma função pedagógica através dade uma aceitação «estica da vida», a «aurea mediocritas», o elogio do «carpequal (re)encontrar aquela calma e aquele estoicismo, ainda que, afirma Reis,diem», que para o Horácio português se torna literalmente «colhe o dia», não nadando pleno crédito à sua desilusão e consciência do fingimento proposto, «( )marca de uma fictícia quanto improvável reconstrução do paganismo, masnão são coisas que se parecem com a calma antiga e o estoicismo grego»12.como forma disciplinada de controle da pulsão que empurra o ser conscientepara o abismo insondável da existência, no fundo da qual encontrará o nada.Não é certamente casual na série de odes publicadas no número 1 de Athena, aIsto a partir da ideia de que, citando o próprio Ricardo Reis:primeira, composta em 1921, que diz:«O que é comum a toda a moral pagã, seja qual for, visa um fim humano, a organização da pessoa humana, não a transcendência dela. A moral pagã é portantouma moral de orientação e de disciplina, ao passo que a moral cristã é uma moral de renúncia e de desapego»7.268Ibid., p. 88.9Ver o conhecido artigo de PESSOA, F. «A nova poesia portuguesa sociologicamente considerada»,publicado n’A Águia, nº 4, 2ª série, abril de 1912.5PEREIRA, H. da Rocha. Op. cit., p. 10.10PESSOA, F., Correspondência 1905 -1922, ed. M. Parreira da Silva, Assírio & Alvim, 1999, p. 141.6REIS, R., Prosa, ed. M. Parreira da Silva, Lisboa: Assírio & Alvim, 2003, p. 280.11REIS, R. Prosa, cit., pp. 88-89.7Ibid., p. 88.12Ibid, p. 172.27

«Seguro assento na coluna firme«Só de aceitar tenhamos a Ciência» (IV), voltados para a construção de uma pe-Dos versos em que fico,dagogia da essência do existir, que Reis reparte entre as suas musas femininasNem temo o influxo inúmero futuroou um interlocutor imaginário, condensando nos seus versos «uma filosofiaDos tempos e do olvido;toda», para usar as palavras de Alberto Caeiro, como recita a ode XVII:Que a mente, quando, fixa, em si contempla«Não queiras, Lídia edificar no spaçoOs reflexos do mundo,Que figuras futuro,Deles se plasma torna, e à arte o mundo,( )Cria, que não a mente.Cumpre-te hoje, não sperando.Assim na placa o externo instante grava( )Seu ser, durando nela.»Não te destines, que não és futura.»Encerrado na estrutura latinizante desta ode, está presente, de facto, o topos ho-Tratar-se-ia, pois, de reativar as funções parenética e performativa dominantesraciano da função da poesia como defesa contra a ação de rapina do tempo, quenas odes de Horácio, que aqui Ricardo Reis adota, amplificando-lhes o efeitono futuro é sinónimo de morte, ao qual contrapor a certeza, «firme», do instanteanacrónico no plano formal, como tal aparece uma das inúmeras transfigura-«gravado na pedra» do verso, capaz de assegurar a imortalidade ao poeta que seções alegóricas da morte, transformada no «regaço insaciável da pátria detorna também «doador de imortalidade» . Poesia, pois, como antídoto à «atraPlutão» (XX).13cura», a angústia da morte, presente em Horácio e que Reis transfigura magistralmente nesta ode, fazendo dela, num certo sentido, o manifesto, o melhor, aSe se considerar o conjunto das vinte odes publicadas no primeiro número demise en abîme da série publicada. A rebuscada complexidade de uma arcaizanteAthena, não se pode não notar uma exemplar disposição da sequência das com-sintaxe revela, facto não menos secundário, a consciência da novidade de talposições. Nessas, está presente o paradigma da filosofia estoico-epicúrea, filtra-poesia nos anos vinte, e sobretudo mostra a capacidade de reconstrução daquelada através do poeta venusino, quando cada ode constitui uma pequena lição éti-«Ars Poetica», como disciplina das palavras com que salvaguardar e dominar «oca sobre como aceitar a existência, sem aspirações de riqueza ou de glória,conteúdo emotivo e intelectual» que também Reis, como nota Álvaro desabendo que o tempo devorará rapidamente todos os momentos. Portanto, a pri-Campos, demonstra ter. Neste aspeto, com certeza o poema VII que recita:meira norma é a de se fazer fingidamente inocente e gozar um só dia como se«Ponho na altiva mente o fixo esforçofosse uma vida inteira, como o poeta exorta Lídia, através da metáfora das «vo-Da altura, e à sorte deixo,lucres rosas». De resto, nestas composições estão presentes todas as figuras fe-E as suas leis, o verso;mininas horacianas, Lídia, Cloe e Nera, as quais, mais que referentes afetivos,Que quando é alto e régio o pensamento,aparecem aqui como ideais discípulas, instruídas para aprender um preceitoSúbdita a frase o buscafundado na parcimónia das coisas e dos sentimentos.E o scravo ritmo o serve.»«Prazer, mas devagar, Lídia, que a sorte àqueles não é grata que lhe das mãos arRevela a sua função metapoética, ao fazer-se eco do primeiro.rancam» (XIX).A frieza escultória das odes de Reis, neste sentido eleva ao grau extremo tal dis-A coesão temática da recolha é também extraordinariamente evidenciada porciplina, no jogo do «drama em gente», mas sob a fria eloquência, aquela «febreum superabundante e constante uso de latinismos, como «marcenda», «volu-de além» que parece dormente, se revelará de modo claro nas odes, no seu aspe-cre», «depredando», «atro», este último adjetivo usado por Horácio quase deto mais renunciatário e niilista. Todavia, antes deste ou às vezes de forma si-modo exclusivo; da riqueza de referências a topos da cultura clássica, como o riomultânea, a ideia de disciplina estoica é frequentemente expressa através deStige, a cidade de Tebas, a ilha de Lesbos, as divindades, como Neptuno, Plutão,uma poesia de tipo gnómico ou sentencioso, com o uso de máximas e preceitos,as figuras míticas, a de Ulisses, as ninfas e faunos, e aos grandes poetas da antiguidade, Homero, Píndaro, etc., engastados em versos construídos imitando a1328Cf. TRAINA, Alfonso. «Introduzione a Orazio», Odi ed Epodi, BUR, Milão: 2013, p. 27.sintaxe latina.29

Tudo isto torna mais preciosas as vinte odes que figuram em Athena, fixando-Não há tristezas-lhes a peculiaridade e a distância da poesia «objetiva», quanto aparentementeNem alegriasprimitiva de Alberto Caeiro. De certo modo, o efeito de acumulação de elemen-Na nossa vida.tos clássicos confere à recolha a valência de summa pessoana da estética neopa-Assim saibamos,gã de que Ricardo Reis se encarregou, escrevendo composições extraordináriasSábios incautos,que, não obstante ou graças ao manto de classicismo que a todas se estende, re-Não a viver,velam que sob «o maravilhoso rochedo sem sol» pulsa toda a inquietação de umpoeta consciente da gravidade e do mistério da existência.Mas decorrê-la,Tranquilos, plácidos,Todavia, o discurso enriquece-se com interessantes estímulos, se olharmos,Tendo as criançasonde for possível, à sequência de composições das muitas odes e poesias quePor nossas mestras,acompanharam a atividade do heterónimo até ao último ano da vida de Pessoa.E os olhos cheiosDe Natureza.Sabemos que o ano de 1914 não só foi o ano do nascimento oficial dos heteróni-.mos, mas também um ano muito fecundo para Ricardo Reis14.Não vale a penaEm particular, uma das suas composições daquele ano, de entre as mais conhe-Fazer um gesto.cidas, «Mestre são plácidas/todas as horas» oferece a oportunidade de observarNão se resistea interação do discípulo acabado de aparecer com os seus mestres, AlbertoAo deus atrozCaeiro e o poeta latino Horácio. Nesta extraordinária poesia, Reis consegue har-Que os próprios filhosmonizar os seus ensinamentos, fazendo-nos entrever o futuro percurso a seguir.Devora sempre.Trata-se de uma poesia-bívio, na qual a ligação a Caeiro e a adoção dos princípios da sua poética são as premissas necessárias para a elaboração mais intelec-Colhamos flores.tualizada e arcaizante das futuras odes.Molhemos levesAs nossas mãos«Mestre, são plácidasNos rios calmos,Todas as horasPara aprendermosQue nós perdemos.Calma também.Se no perdê-las,Qual numa jarraGirassóis sempreNós pomos flores.Fitando o sol,da vida iremosTranquilos, tendoNem o remorsoDe ter vivido.»1430Contam-se 28 odes e uma dezena de rascunhos de poesias ou primeiras versões das odes publicadas na Athena. Cf.REIS, Ricardo. Poesia (Pósfacio). Ed. M. Parreira da Silva, Lisboa: Assírio & Alvim, 2000, p. 228.31

Dir-se-ia que esta poesia mostra um estado de graça absoluta, em que o delicadoEstamos já defronte ao desmascarar e à negação da instância suprema das di-diálogo em voz baixa entre Caeiro e Reis flui sem cesuras, e, como numa passagemvindades, sobre as quais «o eterno fado pesa», facto que na verdade deixa trans-de testemunho discreta e confiante, ao lado do primeiro mestre perfila-se a figuraparecer outro nível não menos central na reflexão de Pessoa, ou seja, a sua ver-de Horácio .tente ocultista, atrás da qual a grande dúvida e a incontornável interrogação15sobre a busca de um sentido, sobre o desvendar do mistério vão-se avultando,Claro, tudo isto faz também parte da encenação pessoana, mas aqui podemostanto que com razão se poderia afirmar que Ricardo Reis «é o apagador dostocar com a mão o quanto das páginas muitas vezes contraditórias e tortuosasdeuses»17.da prosa, com a qual Pessoa constrói as suas teorias estético-literárias, se produz depois agilmente a poesia: uma poesia sublime e envolvente, apesar daO progressivo apagamento de qualquer credo, embora fictício, implica uma radi-complexidade discursiva de que está imbuída.calização daquela advertência à parcimónia e à moderação que conduzirá a umaforma de pedagogia marcada cada vez mais pela negatividade, sintetizável naA maior parte das odes e poesias que se seguem são todas exemplarmente cons-total e altiva abstinência da vida, magistralmente encerrada nos versos «Senta-truídas à maneira dos clássicos, mas logo começa a aflorar aquele «fundo de an-te ao sol. Abdica/e sê rei de ti próprio». Aliás, escrita no mesmo dia, uma outragústia moderna», para utilizarmos as palavras de Eduardo Lourenço16, que,ode reitera este conceito, quando lemos:acentuando e ultrapassando o véu de melancolia que sempre investe e declina,«Sábio é o que se contenta com o espectáculo do mundo,em geral, a poesia clássica e a horaciana, em particular, nos anos seguintes ten-E ao beber nem recordaderá a transbordar e a fazer vacilar aquela bela gaiola protetora e tristementeQue já bebeu na vida,consolatória da disciplina estoico-espicúrea, a mostrar a falácia e a impossibili-Para quem tudo é novodade da ataraxia, facto que envolve igualmente o plano da expressão e daE imarcescível sempre.linguagem.E ele espera, contente quasi e bebedor tranquilo,Já nas poesias de 1914 e dos anos imediatamente a seguir, o pedagogismo deE apenas desejandoReis começa a perder a sua eficácia baseada no fingimento do credo nos deusesNum desejo mal tidopagãos. Como diz a conhecida poesia:Que a abominável onda«Só esta liberdade nos concedemO não molhe tão cedo.»Os deuses: submetermo-nosAo seu domínio por vontade nossa.Esta máxima de sabedoria parece, contudo,

Fernando Pessoa e a cultura Árabe-Islâmica: de Al-Cossar a Omar Khayyam" PATRÍCIA REIS · MODERAÇÃO 18H15 Debate 18H30 Apresentação do livro Os Objectos de Fernando Pessoa, 2º volume da colecção Acervo da Casa Fernando Pessoa 21H30 Concerto de Mariano Deidda - Mensagem Pausa para almoço 14H30 -15H30 Painel: O perfeito não se .